segunda-feira, 26 de março de 2012

A licitação é uma ideia falida.





Por: MARCUS RÔMULO MAIA DE MELLO (Promotor de Justiça, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público de Maceió-AL).


A licitação é uma ideia falida, um paciente mantido vivo em estado vegetativo porque simplesmente não sabemos como agir se ele se for. Ela sobrevive como uma homenagem que o vício presta à virtude, amparada no senso comum de que “ruim com ela, pior sem ela”. O único argumento para conservar a atual lei de licitações é o de que a sua extinção favorece os corruptos e sua manutenção, os honestos. Desmontarei, a seguir, um argumento e outro.

A justificativa para a lei de licitações é a de que ela oferece uma barreira real às negociatas, correto? Não. A lei de licitações é burocrática, prenhe em questões de lana caprina e mais intrincada que manual de forno de micro-ondas. É acessível apenas a especialistas, como promotores, procuradores, auditores, controladores, consultores, escritores e quadrilhas especializadas em burlá-la. Os milhares de pequenos municípios não possuem gente preparada para conduzir uma licitação. Elas são entregues, então, a escritórios e consultorias especializadas da capital que, não raro, montam todo o processo licitatório dentro de seus gabinetes. Que espécie de lei é essa que, a pretexto de garantir transparência, é imperscrutável para a maioria das pessoas?

Nas grandes licitações, há poucas empresas aptas a concorrer. Por que iriam se digladiar se o enorme território nacional pode ser fatiado entre elas? Preferiram garantir o seu quinhão e nenhuma entra no quintal alheio, a não ser como figurante, para dar um verniz de concorrência à licitação. Fornecimento de merendas, combustíveis, limpeza urbana, transporte público, o território brasileiro foi loteado entre os concorrentes e o resultado é decidido antes, em mesas de negociações das quais participam somente os fornecedores. O pior é que esta prática se estendeu às licitações médias, que são a maioria e que envolvem milhões de reais.

Uma vez que a prática de combinar preço em licitações tornou-se comum, os cargos de terceiro escalão do setor de compras passaram a ser cobiçados pelos partidos políticos, de olho nas oportunidades de financiamento de campanhas. O “pedágio” nas licitações tornou-se frequente e o percentual cada ano aumenta, pois quanto mais dinheiro se gasta em campanhas, mais cara elas ficam. Os contratos públicos estão bem mais caros que os preços praticados no mercado. O alto custo das campanhas eleitorais é o calcanhar de Aquiles das democracias de massa nos países com dimensão continental. O empresário empreendedor é uma peça essencial nas democracias capitalistas. Mas esperar que um homem desses, tão achegado ao lucro a ponto de arriscar sua fortuna diariamente, doe milhões às campanhas por puro altruísmo ou diletantismo é imaginar que o leão irá se compadecer da zebra. Um empresário poderia dizer honestamente que investiu na campanha de determinado candidato porque quer uma oportunidade para fazer negócios com a administração pública, mas isso não é permitido. Então, as decisões são tomadas nos gabinetes de repartição e quartos de hotéis, onde se discute assuntos pouco republicanos, pois, como dizia Louis D. Brandeis, o sol é o melhor desinfetante que existe.

Poder-se-ia argumentar que sem licitação seria pior. Será? O direito tem suas idiossincrasias. O leitor incauto que vê as imagens fortes da propaganda contra os males do fumo estampadas nas carteiras de cigarro, imagina que elas estão lá para proteger o consumidor. Na verdade, elas têm servido para isentar as empresas de qualquer responsabilidade nas ações movidas por ex-fumantes com câncer. As empresas dizem: – nós avisamos que fazia mal, você não viu as imagens? Se o gestor público escolhesse seu fornecedor diretamente, assinaria um contrato intuito personae e poderia ser responsabilizado solidariamente pela sua execução. A licitação blinda o gestor contra qualquer acusação. Ele pode simplesmente dizer que não foi ele quem escolheu o fornecedor. Ou seja, para o desonesto é preferível uma licitação fraudada à ausência de licitação. Se o Congresso Nacional propuser o fim das licitações, haverá uma gritaria do poderosíssimo lobby das quadrilhas especializadas em fraudá-las, pois hoje não só os tubarões, mas até as rêmoras mordiscam um bom dinheiro.

Além de blindar o gestor desonesto contra condenações por improbidade, oferecendo-lhe uma demão de boa-fé, a lei de licitações lhe fornece inúmeras brechas legais para fraudes. Existe a figura do “mergulhador”, que é o fornecedor bem relacionado. Ele irá baixar seus preços ao ponto da inexequibilidade, para vencer a licitação. Meses depois seu contrato será reajustado em vinte e cinco por cento, limite que a lei permite, e voilá: o que era mais barato ficou mais caro! Pouca gente sabe, mas a lei de licitações permite a cessão total ou parcial do contrato. Muitos gestores negociam com a licitante vencedora a cessão de até vinte por cento do contrato para uma empresa de sua confiança, que só irá receber sua parte, sem prestar efetivamente serviço algum. É uma forma de batizar a propina. O Estatuto das Microempresas (Lei Complementar nº 123) admite que o gestor exija da licitante vencedora a subcontratação de até trinta por cento do valor do contrato (art. 48, III) para uma empresa de pequeno porte, certamente indicada por ele, com a vantagem adicional de que o empenho e o pagamento podem ser feitos diretamente à subcontratada. Em suma, nenhum mau gestor quererá o fim da licitação, porque a licitação é a beatificação do ilícito.

Enfim, foi demonstrado que o gestor desonesto tem mais a ganhar com a licitação do que sem ela. O leitor poderá concluir que ao menos a licitação ajuda o honesto. Ledo engano. Para o gestor honesto, a licitação é uma maldição disfarçada de benção. Se ele não for da área jurídica, não entenderá patavina da lei; se for, pensará que entende. Terá dificuldade em encontrar servidor que domine o tema e se o encontrar, ficará à mercê dele. Sua honestidade será irrelevante para o conluio entre fornecedores. O efeito prático da sua não participação é economizar o dinheiro da propina. Se se atrever a fazer licitações honestas a máfia o acuará. Há recursos administrativos, impugnações de edital, de proposta, liminares judiciais e infindáveis maneiras de atrasar uma licitação ad aeternum. O pobre gestor honesto terminará seu mandato sem comprar um parafuso. Curiosamente, a licitação pretende garantir a impessoalidade nos contratos, cuja base é, justamente, a confiança. O gestor deverá contratar quem não conhece. Não se admire se uma fábrica de pregos ganhar uma licitação para importação de arenques.

O resultado das licitações são uma babel. O posto de gasolina que venceu a licitação fica a vinte quilômetros da repartição pública, obrigando os carros a se deslocarem, quando há um posto logo na esquina vendendo gasolina por um centavo a mais. Escolas do interior não podem comprar produtos frescos da mercearia da esquina porque quem venceu a licitação pra fornecer merenda foi uma empresa de São Paulo, que trará a mercadoria de caminhão e certamente com atraso.

A dispensa de licitação pelo valor é ridícula: cerca de oito mil reais para serviços e compras e quinze mil para obras e isso corresponde ao valor de um ano! Muitas famílias gastam mais do que isso por ano com feira e se tivessem que fazer licitação para saber em qual supermercado comprar provavelmente passariam fome. Já o gestor tem que se submeter a esse martírio diuturnamente e deve ficar atento, pois se a soma das aquisições anuais, segundo o gênero, ultrapassar esse limite pífio, ele será acusado de fracionar despesas com o intuito de burlar a licitação, o que, além de improbidade, é crime, punível com pena de três a cinco anos de detenção. A consequência é a concentração das despesas públicas nas mãos de poucos, quando o ideal é que fosse pulverizada. Podemos ver isso nas escolas públicas e nos postos de saúde, onde nada funciona: falta seringa, luvas cirúrgicas, medicamentos, água mineral, papel higiênico, giz, as coisas mais triviais. Nada se faz, ar-condicionados ficam parados por meses, não se substitui um vidro quebrado, tudo à espera da licitação, porque tudo se multiplica por doze meses e um erro de cálculo fará de um gestor honesto um criminoso. Um sujeito precavido não quer ser ordenador de despesas nessas condições, então todas as licitações, compras e aquisições concentram-se nas secretarias. Os secretários, por seu turno, apelam ao governante, que assina com eles todas as homologações de licitação e contratos administrativos, em tal número que são a perder de vista. Por conta disso, arrisco dizer que ao fim do mandato serão raros os governantes e secretários que se safarão de uma ação por improbidade.

Além de não ajudar o honesto, nem atrapalhar o desonesto, a licitação ainda deixou os órgãos de fiscalização preguiçosos. Todo o esforço está concentrado em fiscalizar a fase de escolha, pouca atenção se dá ao sobrepreço e menos ainda à fase de execução. É como se a licitação em si purgasse o ilícito. O resultado são canetas que não escrevem, grampeadores que não grampeiam e toda a sorte de quinquilharias de péssima qualidade com o menor preço. As empreitadas são ainda piores: asfaltos de má qualidade, escolas imprestáveis, postos de saúde inservíveis, nem o sistema prisional respeitam – há presídios Brasil afora cujas instalações, de tão vulneráveis, mereciam que o construtor as terminasse por dentro, de modo que quando colocasse a última lajota, por lá mesmo ficasse.

2 comentários:

  1. Fácil colocar a culpa nas licitações para a falta de remédios, por exemplo.
    E a gestão de estoque, planejamento de compras?
    Não é feito pq dá trabalho e as pessoas não são preparadas para a função. Isso é culpa da lei?

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    1. Prezado Anônimo:

      Preliminarmente, quero agradecer pelo interesse e participação. O grande objetivo do Blog, além de despertar a sociedade para a necessidade do controle social da gestão governamental, é fomentar o debate sobre temas intrínsecos à administração pública.

      Não há como negar que a Lei de Licitações carece de atualizações. Sua concepão se deu em um momento caracterizado pela necessidade da instituição de freios e contrapesos, típico do modelo de gestão burocrático. Não obstante, valores estabelecidos em 1993 para dispensa e modalidades de licitação permaneces inalterados, apesar da perda de valor aquisitivo verificada ao longo do tempo.

      Apesar disso, a licitação não é o único desafio dos organismos públicos. Os controles de almoxarifado, que afetam diretamente o planejamento das compras é fundamental ao pleno desenvolvimento das ações governamentais, caso se deseje alcançar os melhores padrões de economicidade, eficiência e eficácia.

      Atrelado a isso existe a deficiência normativa e de capacitação do funcionalismo público, que deve ser objeto de atuação permanente dos sistemas de controles internos das administrações públicas.

      Tudo isso reflete no resultado da atividade governamental. Você está corretíssimo(a).

      Obrigado uma vez mais.

      Saudações cordiais.

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