Em
recente publicação intitulada “O caixa ainda é o rei?”[1], a Associação dos
Contadores Certificados (ACCA[2], sigla em inglês) e a
Federação Internacional de Contadores (IFAC[3], também em inglês) delineiam
os benefícios da adoção do regime de competência na contabilidade aplicada ao
setor público, associando, inclusive, a possibilidade de enfrentamento de alguns
desafios presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização
das Nações Unidas (ONU)[4] por meio do uso das
informações geradas pela contabilidade.
Nas palavras de Kevin
Dancey e Helen Brand, CEO’s da IFAC e ACCA, respectivamente, “Um governo
utilizando a contabilidade por competência tem, por exemplo, o mecanismo para
registrar onde suas fontes de água se encontram e avaliar o seu valor de acordo
com as condições operacionais de produção, o que é crucial para avaliar se eles
estão fornecendo água em condições apropriadas aos cidadãos”. E isso tem
relação com o sexto objetivo descrito nos ODS da ONU: assegurar a
disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos.
É claro que essa agenda
ambiental e sustentável ganha relevo em economias consolidadas e que já
superaram uma série de percalços ainda enfrentados pelas economias em
desenvolvimento, como é o caso do nosso país. No Brasil, indubitavelmente o
maior benefício a curto prazo a ser obtido com as informações geradas por uma
boa contabilidade governamental reside na possibilidade de análise financeira e
tomada de decisão econômica de forma segura e embasada, visando a gestão
apropriada dos recursos, o melhor proveito dos ativos, a adoção de atitudes
preventivas quanto a riscos fiscais identificados e, em última escala, a melhoria da performance
do setor público.
Talvez alguns gestores
possam se perguntar: “Mas eu tenho acesso aos relatórios produzidos pelo setor
contábil da minha organização a qualquer tempo. O que há de novo no que está
sendo exposto?”
Algumas questões pertinentes
que se apresentam, nesse contexto, na realidade contábil atual brasileira, são:
as demonstrações financeiras e demais relatórios gerados pela contabilidade são
oportunos, fidedignos e tempestivos? Todos os ativos estão registrados? É
sabido quanto se possui de tributos não inscritos em dívida ativa a receber? As
praças, pontes, estradas e outros ativos de infraestrutura estão
contabilizados? E os passivos? Os usuários das informações contábeis baseiam suas
análises apenas nos dados oriundos da execução orçamentária ou as obrigações
por competência e as provisões constam dos balanços e também estão sendo
consideradas? Que visão de futuro as demonstrações do presente propiciam?
Todos esses componentes
citados guardam relação com o regime contábil de competência. E com isso, não está
a se diminuir a importância do orçamento na gestão governamental, executado por
meio de regime de base modificada (arrecadação para receitas e empenho para
despesas). Mas a visão orçamentária compreende apenas um ciclo financeiro, um
ano, conforme disposto no art. 34 da Lei Federal 4.320/64. Para pensar o
futuro, é preciso mais que o orçamento.
Os principais benefícios
oportunizados pela adoção do regime de competência pela contabilidade aplicada
ao setor público, segundo a já mencionada publicação da ACCA e IFAC são:
- o aprimoramento da accountability, já que as informações
serão mais acessíveis e comparáveis entre entidades, inclusive em formato mais
próximo do praticado pelo setor privado;
- o incremento à
credibilidade fiscal;
- apoio ao processo
decisório, seja pela melhor gestão de ativos e passivos, identificação de
riscos fiscais, redução de ilusões fiscais (o que temos verificado com relação
ao cálculo dos gastos de pessoal em alguns Entes subnacionais) ou pela
possibilidade de pensamento a longo prazo;
- colocar a contabilidade
no centro do processo decisório para melhor performance governamental.
Por óbvio, a
implementação do regime de competência deve ser estruturada com esteio em um
arcabouço normativo que viabilize o tratamento de fatos semelhantes de acordo
com uma mesma base conceitual. É nesse contexto que ganham relevo as IPSAS[5], normas contábeis de alta
qualidade elaboradas pela IFAC, por meio do IPSASB[6], e direcionadas ao setor
governamental.
A convergência das IPSAS,
no Brasil, se dá por meio do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) em
parceria com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), com execução operacional
apoiada pelo Grupo Assessor (GA) para convergência, instituído pelo CFC por
meio da Portaria nº 32/2018 e alterações subsequentes. Até março de 2020, 26
IPSAS já haviam sido convergidas nas NBC TSP[7], além da Estrutura
Conceitual. Até 2021, mais 7 normas devem ser convergidas, totalizando 34.
Há um longo percurso até
que a maturidade contábil desejada, aderente ao padrão internacional
preconizado pelas IPSAS e convergido para as NBC TSP, seja alcançado. Há que se
investir o quanto antes em capacitação dos contadores atuantes no setor público
e em tecnologia, automatizando o fluxo de dados das diversas unidades
administrativas dos entes públicos para o “coração” do sistema gerador de
informações financeiras, a contabilidade. Trata-se de considerável esforço, que
precisa ser abraçado pela alta gestão daqueles que representam os Poderes dos Municípios,
Estados, Distrito Federal e da União, demandando investimentos e,
principalmente, compromisso.
Em que pesem os diversos
desafios para que seja alcançada, a médio prazo, uma contabilidade de
excelência no setor público, o caminho da convergência é, sem dúvidas, aquele
capaz de oportunizar tal conquista. Longe de ser um fim em si mesmo, a
convergência contábil trará benefícios, em última análise, à sociedade, pois
permitirá que os gestores públicos vislumbrem os caminhos econômicos mais
acertados para atingir os objetivos estatais, por meio da geração de
informações fidedignas, relevantes, tempestivas, compreensíveis, comparáveis e,
acima de tudo, úteis.
* Jorge de Carvalho
é Contador, Auditor do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) e
membro do Grupo Assessor das Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao
Setor Público (GA/NBC TSP), do Conselho Federal de Contabilidade (CFC).
[1]
https://www.ifac.org/knowledge-gateway/supporting-international-standards/publications/cash-still-king-maximising-benefits-accrual-information-public-sector
[2]
Association of Chartered Certified Accountants
[3]
International Federation of Accountants
[5] International Public Sector
Accounting Standards
[6]
International Public Sector Accounting Standards Board.
[7] Normas Brasileiras de
Contabilidade Técnicas do Setor Público
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