quinta-feira, 12 de março de 2020

Bem-vinda, convergência!

Por: Jorge de Carvalho*


Em recente publicação intitulada “O caixa ainda é o rei?”[1], a Associação dos Contadores Certificados (ACCA[2], sigla em inglês) e a Federação Internacional de Contadores (IFAC[3], também em inglês) delineiam os benefícios da adoção do regime de competência na contabilidade aplicada ao setor público, associando, inclusive, a possibilidade de enfrentamento de alguns desafios presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU)[4] por meio do uso das informações geradas pela contabilidade.

Nas palavras de Kevin Dancey e Helen Brand, CEO’s da IFAC e ACCA, respectivamente, “Um governo utilizando a contabilidade por competência tem, por exemplo, o mecanismo para registrar onde suas fontes de água se encontram e avaliar o seu valor de acordo com as condições operacionais de produção, o que é crucial para avaliar se eles estão fornecendo água em condições apropriadas aos cidadãos”. E isso tem relação com o sexto objetivo descrito nos ODS da ONU: assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos.

É claro que essa agenda ambiental e sustentável ganha relevo em economias consolidadas e que já superaram uma série de percalços ainda enfrentados pelas economias em desenvolvimento, como é o caso do nosso país. No Brasil, indubitavelmente o maior benefício a curto prazo a ser obtido com as informações geradas por uma boa contabilidade governamental reside na possibilidade de análise financeira e tomada de decisão econômica de forma segura e embasada, visando a gestão apropriada dos recursos, o melhor proveito dos ativos, a adoção de atitudes preventivas quanto a riscos fiscais identificados  e, em última escala, a melhoria da performance do setor público.

Talvez alguns gestores possam se perguntar: “Mas eu tenho acesso aos relatórios produzidos pelo setor contábil da minha organização a qualquer tempo. O que há de novo no que está sendo exposto?

Algumas questões pertinentes que se apresentam, nesse contexto, na realidade contábil atual brasileira, são: as demonstrações financeiras e demais relatórios gerados pela contabilidade são oportunos, fidedignos e tempestivos? Todos os ativos estão registrados? É sabido quanto se possui de tributos não inscritos em dívida ativa a receber? As praças, pontes, estradas e outros ativos de infraestrutura estão contabilizados? E os passivos? Os usuários das informações contábeis baseiam suas análises apenas nos dados oriundos da execução orçamentária ou as obrigações por competência e as provisões constam dos balanços e também estão sendo consideradas? Que visão de futuro as demonstrações do presente propiciam?

Todos esses componentes citados guardam relação com o regime contábil de competência. E com isso, não está a se diminuir a importância do orçamento na gestão governamental, executado por meio de regime de base modificada (arrecadação para receitas e empenho para despesas). Mas a visão orçamentária compreende apenas um ciclo financeiro, um ano, conforme disposto no art. 34 da Lei Federal 4.320/64. Para pensar o futuro, é preciso mais que o orçamento.

Os principais benefícios oportunizados pela adoção do regime de competência pela contabilidade aplicada ao setor público, segundo a já mencionada publicação da ACCA e IFAC são:

- o aprimoramento da accountability, já que as informações serão mais acessíveis e comparáveis entre entidades, inclusive em formato mais próximo do praticado pelo setor privado;

- o incremento à credibilidade fiscal;

- apoio ao processo decisório, seja pela melhor gestão de ativos e passivos, identificação de riscos fiscais, redução de ilusões fiscais (o que temos verificado com relação ao cálculo dos gastos de pessoal em alguns Entes subnacionais) ou pela possibilidade de pensamento a longo prazo;

- colocar a contabilidade no centro do processo decisório para melhor performance governamental.

Por óbvio, a implementação do regime de competência deve ser estruturada com esteio em um arcabouço normativo que viabilize o tratamento de fatos semelhantes de acordo com uma mesma base conceitual. É nesse contexto que ganham relevo as IPSAS[5], normas contábeis de alta qualidade elaboradas pela IFAC, por meio do IPSASB[6], e direcionadas ao setor governamental.

A convergência das IPSAS, no Brasil, se dá por meio do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) em parceria com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), com execução operacional apoiada pelo Grupo Assessor (GA) para convergência, instituído pelo CFC por meio da Portaria nº 32/2018 e alterações subsequentes. Até março de 2020, 26 IPSAS já haviam sido convergidas nas NBC TSP[7], além da Estrutura Conceitual. Até 2021, mais 7 normas devem ser convergidas, totalizando 34.

Há um longo percurso até que a maturidade contábil desejada, aderente ao padrão internacional preconizado pelas IPSAS e convergido para as NBC TSP, seja alcançado. Há que se investir o quanto antes em capacitação dos contadores atuantes no setor público e em tecnologia, automatizando o fluxo de dados das diversas unidades administrativas dos entes públicos para o “coração” do sistema gerador de informações financeiras, a contabilidade. Trata-se de considerável esforço, que precisa ser abraçado pela alta gestão daqueles que representam os Poderes dos Municípios, Estados, Distrito Federal e da União, demandando investimentos e, principalmente, compromisso.

Em que pesem os diversos desafios para que seja alcançada, a médio prazo, uma contabilidade de excelência no setor público, o caminho da convergência é, sem dúvidas, aquele capaz de oportunizar tal conquista. Longe de ser um fim em si mesmo, a convergência contábil trará benefícios, em última análise, à sociedade, pois permitirá que os gestores públicos vislumbrem os caminhos econômicos mais acertados para atingir os objetivos estatais, por meio da geração de informações fidedignas, relevantes, tempestivas, compreensíveis, comparáveis e, acima de tudo, úteis.

* Jorge de Carvalho é Contador, Auditor do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) e membro do Grupo Assessor das Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público (GA/NBC TSP), do Conselho Federal de Contabilidade (CFC).



[1] https://www.ifac.org/knowledge-gateway/supporting-international-standards/publications/cash-still-king-maximising-benefits-accrual-information-public-sector
[2] Association of Chartered Certified Accountants
[3] International Federation of Accountants
[5] International Public Sector Accounting Standards
[6] International Public Sector Accounting Standards Board.
[7] Normas Brasileiras de Contabilidade Técnicas do Setor Público

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