quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A necessidade de mudança de postura dos profissionais contábeis no setor público.

Por: João Scaramelli e Jorge de Carvalho*

Duas ações divulgadas recentemente pela STN causaram um certo frisson entre os contadores públicos, produzindo reações positivas e negativas:

- a primeira foi a disponibilização pela STN, ao Conselho Federal de Contabilidade (CFC), de relatórios de inconsistências verificadas na Declaração de Contas Anuais (DCA) de 2018, para que sejam tomadas as providências quanto à responsabilização dos profissionais de contabilidade;

- a segunda foi a criação e a divulgação de um ranking intitulado “Qualidade da Informação Contábil e Fiscal Estadual no Siconfi”, para avaliar a consistência das informações que a STN recebe pelo referido sistema.

Ambas foram idealizadas com o objetivo de melhorar a qualidade das informações contábeis dos entes governamentais, disseminar as Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público (NBC TSP) e consolidar as contas públicas (divulgação do Balanço do Setor Público Nacional - BSPN) num padrão satisfatório.

A primeira ação se refere ao envio ao CFC de relatórios elaborados pela STN sobre as DCA's de alguns municípios, nas quais foram encontradas inconsistências graves referentes aos anos de 2017 e 2018. Dentre as principais, destacam-se: 

- valores de classes contábeis iguais entre dois ou mais municípios (ex.: ativos de entes distintos com valores exatamente iguais);

- valores irreais das contas do ativo (ex.: município com valor total do ativo igual a R$ 1,00 - um real); e

- valores irreais da despesa empenhada (ex.: valor total dos empenhos emitidos no ano igual a zero ou três municípios com valores totais empenhados idênticos – R$ 100.000,00 – cem mil reais).

A confecção e o fornecimento destes relatórios se baseiam nas cláusulas quarta e quinta do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) realizado entre a STN e o CFC, que busca:

- a melhoria das informações contábeis recebidas pela STN; 

- 0 cumprimento do ACÓRDÃO Nº 44/2016 – TCU – Plenário; 

- o cumprimento do ACÓRDÃO Nº 1235/2017 – TCU – Plenário; 

- o cumprimento do ACÓRDÃO Nº 361/2019 – TCU – Plenário; e 

- o cumprimento do ACÓRDÃO Nº 2538/2019 - TCU - 2ª Câmara.

E o que diz o ACT? Abaixo são transcritas as cláusulas anteriormente citadas: 

CLÁUSULA QUARTA - Compete à STN/MF: 

V -- Fornecer informações sobre indícios de inconsistências e/ou irregularidades nas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais recepcionados pela STN/MF conforme disposições do § 2º do art. 48 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, bem como a identificação do profissional responsável pelo seu envio, com a finalidade de subsidiar a fiscalização do exercício da profissão contábil prevista no art. 2º do Decreto-Lei nº 9.295, de 27 de maio de 1946.

CLÁUSULA QUINTA - Compete ao CFC:

III - Proceder diretamente e/ou informar e orientar os conselhos regionais de contabilidade quanto à devida apuração, com base nas informações previstas no incisa V da CLÁUSULA QUARTA, a responsabilidade do profissional de contabilidade, de acordo com as atribuições previstas nos arts. 6º e 10 do Decreto-Lei n' 9.295, de 27 de maio de 1946; 

IV -- No exercício da fiscalização do exercício da profissão contábil deverá ser realizada, diretamente ou por intermédio dos conselhos regionais de contabilidade, a averiguação da observância do padrão mínimo de qualidade dos sistemas integrados de administração financeira e controle estabelecidos pelo Decreto nº 7.185, de 27 de maio de 2010, e alterações posteriores, com base no inciso 111 do $ 1º do art. 48 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, informando à STN/MF e aos órgãos de controle interno e externo que possuem jurisdição quaisquer indícios de não conformidade à legislação vigente.

Os dados constantes dos relatórios produzidos pelo Tesouro Nacional, à priori, ilustram inconsistências graves que comprometem sobremaneira o processo de consolidação das contas públicas. 

Já a segunda ação (criação e divulgação de um ranking para avaliar a consistência da informação que o Tesouro recebe por meio do Siconfi) objetiva, segundo a própria STN, “[...] fomentar a melhoria da qualidade da informação utilizada tanto pelo Tesouro Nacional quanto pelos diversos usuários dessa informação”.

Essa mesma estratégia foi adotada com a transmissão das Matrizes de Saldos Contábeis (MSC) neste ano de 2019 e gera um clima de competição, uma vez que classifica os entes integrantes da avaliação em ordem decrescente (da maior para a menor nota obtida). Por óbvio, esse ranking desperta os mais variados sentimentos: para o primeiro colocado (no caso dessa primeira edição divulgada, o Estado de Sergipe), certamente uma sensação de dever cumprido e de legitimação dos seus esforços contábeis e fiscais; para os últimos frustração ou até mesmo revolta com a metodologia adotada pela STN, além de críticas à publicidade da forma realizada.

Esta primeira versão do ranking foi baseada nos dados de 2018 e utilizou verificações simples, como a igualdade de valores entre relatórios diferentes (cross check) e a observância de determinadas consistências (tais como se o valor dos créditos a receber, após inclusão do ajuste para perdas, se encontrava positivo). Para os próximos anos, serão inseridas verificações mais complexas e que terão mais peso no ranqueamento. Os dados são abertos para acesso público (www.tesourotransparente.gov.br). 

A divulgação do ranking com dados da Administração Pública Estadual (embora ainda carente de aprimoramentos metodológicos, na visão de muitos profissionais responsáveis pelas contabilidades estaduais), já revela algumas questões que precisam ser tratadas adequadamente, visando a melhoria do processo de geração de informações em tal nível da federação. Mas se há espaço para aperfeiçoamento nos Estados, o que esperar da divulgação do ranking dos Municípios, que, na maioria dos casos, possuem menos estrutura administrativa e financeira?

É indispensável relembrar que o objetivo da Ciência Contábil é gerar informação que seja útil aos usuários previstos. No primeiro setor, esses usuários são variados e possuem expectativas diferentes: os gestores precisam de dados confiáveis para a tomada de decisão. A sociedade deseja saber como os recursos da coletividade estão sendo geridos e se a continuidade da prestação de serviços está ou não comprometida (e se irá gerar maiores custos a ela mesma, que é a maior responsável por “pagar a conta”, através dos tributos). 

O controle externo deve atestar a regularidade e a efetividade dos governos. Os investidores precisam avaliar os riscos de cada realidade estatal de forma a mensurar se é viável ou não injetar dinheiro em certas economias e quais os juros a serem aplicados.

É por isso que, irrefutavelmente, não se pode cogitar o descumprimento do objetivo da contabilidade aplicada ao setor público, ou seja, a geração de informações oportunas, fidedignas e, é claro, consistentes. Esse objetivo não é uma novidade. Não decorre da assinatura de um acordo entre o CFC e a STN ou da divulgação de um ranking por este último. 

A grande questão é que a contabilidade governamental nunca esteve tão pública e em evidência. A exposição na mídia e a comparabilidade oportunizada pelas publicações do Tesouro se revelam, nesse sentido, como instrumentos para motivação de mudança de comportamentos.

É por isso que os profissionais contábeis atuantes no setor público devem se preparar para essa nova realidade. E quais ações podem ser adotadas para ter uma contabilidade de qualidade?

O primeiro passo é conhecer as normas. Nesse sentido, reforça-se que a STN, na qualidade de órgão central de contabilidade da União (em função do disposto no Decreto nº 6.976/09), vem editando uma série de normativos, visando a convergência dos procedimentos atualmente praticados no Brasil aos padrões internacionais definidos pelas International Public Sector Accounting Standards - IPSAS, destacando-se como principais:

- o MCASP (Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público), de observância obrigatória, que funciona como filtro normativo, incorporando de forma gradual as NBC TSP (IPSAS convergidas), editadas pelo CFC; e 

- as IPC’s (Instruções de Procedimentos Contábeis), que são facultativas.

Soma-se a esses normativos a Portaria STN nº 548/15, que estabeleceu o plano de implantação dos procedimentos contábeis patrimoniais - PIPCP. Com ela, todos os órgãos e entidades públicos passam a ter prazos para a adoção de boas práticas contábeis de natureza patrimonial. 

Além da capacitação profissional, é indispensável investir em sistemas, pois a disrupção é uma realidade inevitável. A tecnologia pode e deve ser utilizada como aliada para a geração de relatórios contábeis dotados das características qualitativas da informação contábil: fidedignidade, relevância, tempestividade, compreensibilidade, comparabilidade e verificabilidade. Entre as possibilidades existentes, enfatiza-se a criação de equações contábeis que automaticamente efetuem o cotejamento de dados e sinalizem aos contadores o descumprimento de regras de consistência ou indiquem hipóteses passíveis de análise.

Assim, conclui-se que não há mais espaço para que os contadores da área governamental sejam meros expectadores, limitando-se ao registro mecânico dos atos e fatos da Administração Pública. É preciso evoluir e operacionalizar a ciência contábil com excelência nas informações registradas, evidenciadas e remetidas aos controles, sejam internos ou externos, e, principalmente, para a sociedade. Isso demanda rotinas de conferência dos dados contabilizados e sua adequada análise. Precisamos, portanto, de contadores gerenciais!

* João Scaramelli é consultor e analista de negócios em Contabilidade Pública 

* Jorge de Carvalho é auditor do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

Obs.: a opinião dos autores desse artigo não reflete o posicionamento oficial da empresa ou órgão governamental nos quais atuam.

5 comentários:

  1. Para mim o buraco é muito mais embaixo, o desprestígio aos profissionais da contabilidade é imensurável, lembro quando dei um curso na USP em que um contador da prefeitura de São Paulo estava fazendo o seu primeiro curso após 18 anos de atuação, dos lamentos de uma técnica de contabilidade que era a única responsável pela contabilidade da PM de Ribeirão Preto, na época haviam cargos de contadores mas nenhum preenchido, de um recente concurso público na PM de São Caetano do Sul com arrecadação anual acima de 1 Bi por ano, oferecendo salário de pouco mais de 2 mil reais, são tantos os absurdos que vivenciei que sempre questionei a atuação do CFC e CRC em prol dos contadores públicos que ao meu ver desconhece a sua realidade.

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  2. Parabéns pelo post. É verdade! Nos municipios em geral as informações contábeis são fwitas sem obedecerem as regras em geral aplicadas ao setor público.

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  3. Precisam avisar aos gestores públicos para investir e qualificar mais o setor contábil público, pois cada vez exigem mais do profissional e o governo não investe em nosso setor. Por parte do CFC, está mais do que na hora de estabelecer piso salarial justo pra nós que temos mais responsabilidadde perante aos órgãos de fiscalização do que o próprio Gestor.

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    1. Os contadores são obrigados a fazer muitos serviços fora de sua área...... salários baixíssimos e setores com muita influência política e poucos servidores para executar toda a demanda....sem falar na redundância de declarações....

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  4. Parabéns pelas colocações! São oportunas e nos levam a refletir o que e como podemos contribuir na evolução e melhoria das informações contábeis registradas no âmbito da administração pública.

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