Lembro-me da época em
que comecei a atuar no setor governamental, em meados de 2002, quando prestava
serviços de consultoria a municípios baianos, buscando auxiliá-los a executar
de maneira adequada o registro contábil e a confeccionar as prestações de
contas mensais e anual nos moldes exigidos pelo órgão de controle externo
responsável, o TCM-BA.
Como era marcante a
cultura orçamentária naquele período. Preocupávamo-nos com a consistência da
receita e da despesa orçamentária registradas, com a formalidade dos documentos
comprobatórios dos atos de gestão, sempre à luz dos impactos orçamentários
correlatos (empenhos prévios, liquidações respaldadas por documentos hábeis
etc), com o acompanhamento periódico do resultado orçamentário.
Naquele tempo o enfoque
residia no controle do fluxo de caixa projetado para o período de um ano,
sempre atentando para os recursos que de fato ingressavam nos cofres públicos
frente às despesas que se pretendia executar e que possuíam a devida e prévia
autorização legal do parlamento. Aspectos patrimoniais estavam sempre em
segundo plano porque a mentalidade até então era a de que, no setor público,
importante mesmo era o controle do orçamento, dos gastos que os governantes
realizavam frente às receitas arrecadadas, de como os tributos que a sociedade recolhe
estavam sendo aplicados. Para que se preocupar com patrimônio?
Parecia que a
contabilidade no setor público representava uma exceção às demais vertentes da
Ciência Contábil, que desde sempre teve e tem como objeto o patrimônio das
entidades por ela alcançadas e suas variações. Controlar o planejamento e a execução
orçamentária é vital no âmbito governamental? Sem dúvidas, mas por causa disso
o real objeto da Ciência Contábil deve ser relegado a segundo plano? De forma
alguma.
Em determinado momento
da história chegamos ao absurdo de questionar se os princípios de contabilidade
deveriam ser aplicados no setor público. E o Conselho Federal de Contabilidade
(CFC), para dirimir a polêmica, editou, em 2007, a Resolução nº 1.111 (alterada
pela Resolução CFC nº 1.367/11), tratando sobre a interpretação dos princípios
de contabilidade sob a perspectiva governamental. Um passo importante tinha
sido dado na seara pública rumo ao resgate do real objeto da contabilidade. Mas
o ato normativo, por si só, não foi suficiente para alavancar uma mudança
efetiva.
O processo de globalização
da economia fez com que os mercados e governos passassem a acompanhar cada vez
mais de perto os dados dos países com os quais mantinham ou pretendiam manter
relações comerciais e esse foi o principal fator para que a contabilidade
caminhasse para um processo de uniformização mundial, inicialmente no setor
privado e, mais tardiamente na área pública. Como compreender as informações
das mais variadas empresas e governos se os padrões de registro e evidenciação
dos fatos contábeis de cada um seguiam as suas metodologias próprias?
Foi nesse contexto que,
em 2008, o Ministério da Fazenda editou a Portaria nº 184, dispondo sobre as
diretrizes a serem observadas no setor público quanto aos procedimentos,
práticas, elaboração e divulgação das demonstrações contábeis, de forma a torná-los
convergentes com as Normas Internacionais de Contabilidade Aplicadas ao Setor
Público. O Brasil havia resolvido alinhar os seus procedimentos contábeis,
adotando como referência as IPSAS (International
Public Sector Accounting Standards), editadas pela IFAC (International Federation of Accountants),
padrão amplamente aceito por grande parte dos demais países do globo.
Desde então os
profissionais de contabilidade que atuam no setor público têm cada vez mais
adentrado em um território até então pouco conhecido, o do patrimônio,
ensejando a mudança de uma cultura de mais de 50 anos, que é a do orçamento, e
que se faz presente desde a edição da Lei Federal nº 4.320/64. Ressalva-se que
o controle do orçamento continuará a existir, mas os fatos independentes deste
deverão ser capturados pela contabilidade, mesmo em caso de violações legais,
consoante preconiza a máxima da “essência sobre a forma”, amparada pelo
princípio da oportunidade.
A Secretaria do Tesouro
Nacional (STN), na qualidade de órgão central de contabilidade da federação (em
função do disposto no Decreto nº 6.976/09), vem editando uma série de
normativos, visando a convergência dos procedimentos atualmente praticados no
Brasil aos padrões internacionais definidos pelas IPSAS, destacando-se como
principais o MCASP (Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público) e as
IPC’s (Instruções de Procedimentos Contábeis), sendo o primeiro de observância
obrigatória, e as IPC’s, facultativas.
Importante ato editado
pela STN foi a Portaria nº 548/15, que estabeleceu um plano de implantação dos
procedimentos contábeis patrimoniais (PIPCP). Com ela, todos os órgãos e
entidades públicos passam a ter prazos para a adoção de boas práticas contábeis
de natureza patrimonial. Agora, mais do que nunca, os contadores públicos terão
que depreciar, amortizar e/ou exaurir, reconhecer ativos e passivos pelo regime
de competência, registrar ajustes e provisões, ativos intangíveis, mensurar e
evidenciar os bens, inclusive de infraestrutura, dentre outras obrigações, sob
pena dos Entes nos quais trabalham terem negado o aval da União para a obtenção
de transferências voluntárias, caso descumpram o cronograma constante do PIPCP.
A mudança é uma
realidade irreversível, tendo sido ainda mais fortalecida recentemente, com a
aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei nº 229/2009, que estabelece
normas gerais de contabilidade pública, dentre outros dispositivos, revogando
integralmente a Lei nº 4.320/64 e passando a representar o novo marco legal das
finanças públicas brasileiras, caso venha a ser aprovado pela Câmara dos
Deputados e sancionado pela Presidência. O projeto encontra-se alinhado às
normas internacionais, tendo dele participado de forma ativa a STN e o CFC.
A contabilidade no
setor público caminha a passos largos rumo à adoção das melhores práticas
internacionalmente reconhecidas, exigindo dos profissionais da área permanente
atualização, proatividade e disciplina para a sua escorreita aplicação, afinal,
sem contadores devidamente preparados, jamais alcançaremos o resultado
esperado. Como disse Sêneca, “não há vento favorável para quem não sabe onde
quer chegar”. Mas não devemos ficar reféns do vento. Façamos todos a nossa
parte! A teoria está sendo aperfeiçoada. Vamos todos caminhar juntos com ela.
Escrito por: Jorge de Carvalho (Auditor do TCM-SP)
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