sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

2021: um ano desafiador para as contabilidades municipais.

Por: Jorge de Carvalho¹

O ano de 2021 começa com alguns desafios hercúleos para as contabilidades municipais do Brasil. Além de se tratar de período no qual se iniciam novos ciclos políticos nas gestões das Comunas, o que por si só usualmente afeta a organização estrutural dos setores de contabilidade (principalmente quando estes não são constituídos em sua maior parte por servidores de carreira), provocando em não raras vezes percalços ao desenvolvimento das atividades contábeis, diversos prazos para implantação de procedimentos contábeis patrimoniais (PCP) passam a ser obrigatórios.

Esta exigência deriva do documento denominado Plano de Implantação dos Procedimentos Contábeis Patrimoniais (PIPCP), instituído em 24 de setembro de 2015 por meio da Portaria 548 da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), órgão central de contabilidade da União.

Segundo o PIPCP, 8 procedimentos contábeis devem ser mandatoriamente observados pelos municípios a partir de 2021, sendo 3 para aqueles com mais de 50 mil habitantes e outros 5 para os que possuem população até 50 mil habitantes. São eles:










E por que razão a implantação de tais procedimentos se revela como um grande desafio para as contabilidades municipais? Há pelos menos dois fatores que merecem ser enfatizados.

O primeiro é que os profissionais de contabilidade no setor público brasileiro priorizaram, por longo período, a lógica orçamentária na escrituração, regida pela Lei Federal 4.320/64 e que possui regime distinto do patrimonial. As receitas e despesas orçamentárias são contabilizadas com base em regime modificado (arrecadação para receitas e empenho para despesas), enquanto o regime aplicável aos fatos patrimoniais é o de competência (reconhecimento dos fenômenos de acordo com a ocorrência dos fatos geradores, e não quando ocorre o recebimento de um recurso ou o seu desembolso).

Isso culminou em uma forte cultura orçamentária e, de certa forma, numa preterição da representação do patrimônio dos municípios a segundo plano, fazendo com que os balanços públicos se tornassem incompletos, sem apresentar a totalidade dos ativos e dos passivos existentes. Consequentemente, as demonstrações contábeis, notadamente aquelas de cunho patrimonial (com destaque para o balanço patrimonial e para a demonstração das variações patrimoniais), passaram a ter baixa capacidade preditiva e confirmatória, não se revelando como instrumentos hábeis a análises com o propósito de tomada de decisão, e mesmo de prestação de contas numa perspectiva ampla.

Assim, é imprescindível que os profissionais da contabilidade aplicada ao setor público revisitem as normas e conceitos que balizam o registro dos fenômenos patrimoniais, que estejam capacitados para exercerem suas atribuições consoante preconiza o marco regulatório vigente. Esse é o primeiro passo para se ter uma contabilidade patrimonial de qualidade no contexto governamental.

Mas só isso não será suficiente. Como se sabe, a contabilidade nada cria. A Ciência Contábil objetiva elaborar e divulgar informações úteis a diversos usuários, sendo certo que essas informações, em grande volume, são de responsabilidade de outros setores da repartição pública. Logo, é fundamental existir um fluxo de informações satisfatoriamente desenhado e implementado para que os dados necessários ao registro sejam tempestiva e integralmente disponibilizados aos setores contábeis municipais. Esse é o segundo grande desafio.

Como proceder ao reconhecimento, mensuração e evidenciação das provisões por competência, por exemplo, se a Procuradoria Jurídica do Município ou setor equivalente não remeter à contabilidade o levantamento periódico das ações judiciais existentes contra o ente, os valores prováveis das decisões e a estimativa de êxito do ente estatal nos processos? Não compete ao profissional da contabilidade realizar tal avaliação, mas sim levar as informações a balanço (quando for o caso) de maneira condizente com a norma aplicável.

Esse fluxo de informações junto aos mais variados setores da estrutura administrativa municipal é algo que exorbita a competência das contabilidades locais, demandando ação de órgãos como a unidade central de controle interno ou outras Secretarias para que seja de fato implementado. Carece muitas vezes de normatização, adequação de sistemas informatizados e treinamento, pelo que se denota como uma atividade interinstitucional do Governo, a qual só terá êxito caso apoiada pelo alto escalão da administração municipal. É preciso melhor aclarar o papel dos gestores nesse sentido.

Não obstante tais desafios, a representação fidedigna do patrimônio público alicerçada pelas Normas Brasileiras de Contabilidade Técnicas do Setor Público (NBC TSP) editadas pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) irrefutavelmente elevará a qualidade das informações financeiras geradas no ambiente governamental, constituindo-se como subsídio elementar e indispensável para “pensar” o Estado a médio e longo prazo. Os dados orçamentários (frise-se, de extrema importância), serão complementados por relatórios que permitirão a compreensão ampla do aparato estatal, de sorte que as decisões não sejam tomadas somente considerando seu impacto a curto prazo, mas também a continuidade da prestação de serviços e a execução de políticas públicas de forma sustentável, equilibrada e responsável.

É imperioso destacar que, caso os elementos dispostos no PIPCP não sejam adequadamente reconhecidos, mensurados e/ou evidenciados pelas contabilidades municipais, os entes públicos poderão ficar impedidos de receber transferências voluntárias e de contratar operações de crédito, nos termos dispostos no § 2º, art. 1º da Portaria STN 548/2015 e § 2º, art. 51 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000). Reduz-se, assim, o potencial de geração de recursos para financiamento dos programas de governo, em flagrante prejuízo aos anseios da população.

Além disso, os Tribunais de Contas, amparados sobretudo por trabalhos de auditorias financeiras por eles instruídos, poderão emitir parecer contrário à aprovação das contas de governo, deixando claro para a sociedade que o(s) município(s) desrespeitoso(s) ao PIPCP não elabora(m) e divulga(m) seus balanços adequadamente e que é necessário maior compromisso do gestor com a sua contabilidade e, em última escala, com os cidadãos em geral. Afinal, estes, na qualidade de beneficiários dos serviços públicos e de principais provedores de recursos aos governos, são os usuários primários destas informações financeiras, motivo pelo qual sua expectativa na obtenção de dados completos, verdadeiros e tempestivos deve ser inafastavelmente satisfeita.

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¹Jorge de Carvalho é Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) e membro do Grupo Assessor do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) para Convergência das Normas Brasileiras de Contabilidade Técnicas do Setor Público (NBC TSP).

Um comentário:

  1. Olá Jorge! Excelentes observações. A contabilidade precisará das informações dos outros setores e para isso os processos precisarão ser revisados e atualizados para que se possa avançar com os procedimentos contábeis patrimoniais. Parabéns pela iniciativa em alertar os colegas sobre o tema!

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