quinta-feira, 16 de julho de 2020

Eleições municipais e possibilidade de abuso de poder político.

Por Adilson Abreu Dallari*

*Professor titular de Direito Administrativo da PUC-SP e consultor jurídico


As eleições municipais de 2020 são bastante peculiares sob vários aspectos, mas, principalmente no tocante à desigualdade entre os candidatos. O adiamento para novembro pode ajudar um pouco na divulgação de nomes que concorrem pela primeira vez, mas, por outro lado conferem mais tempo para que candidatos à reeleição se beneficiem das facilidades proporcionadas pelo exercício de cargos e funções públicas. Uma significativa peculiaridade foi apontada pelo jornal O Estado de São Paulo de 14/07/20. Reportagem assinada por Camila Turtelli, mostra que as eleições poderão ter um número recorde de parlamentares candidatos, pois estes, além de já serem conhecidos, não precisam deixar o cargo para fazer campanha. Destaca ela, também que "Esta será a primeira vez que as campanhas de candidatos a prefeito e a vereador serão pagas com recursos do fundo eleitoral, criado em 2017. Ao todo, serão R$ 2,035 bilhões divididos entre as 32 siglas do País."

A divisão é feita considerando o número de parlamentares de cada bancada. Assim, o PT, que tem a maior bancada, ficará com 201,3 milhões de reais. A segunda bancada é a do PSL, com 199,4. Enquanto o PT é um partido tradicional, consolidado, o PSL era um partido nanico, legenda de aluguel, que, como tal, foi utilizada para a candidatura do Presidente Jair Bolsonaro, acarretando uma enxurrada de votos para uma sigla sem tradição, sem expressão e de escassa representatividade.

Outro fator de desigualdade está nos parágrafos 9º, 10 e 11, do Art. 166 da Constituição Federal (com a redação dada pela EC 86/15), que tornaram vinculantes e de execução obrigatória as emendas de parlamentares à lei orçamentária. Com isso, os atuais parlamentares alimentam seus currais eleitorais, numa troca espúria de favores e apoios. Conforme destacou o Prof. Modesto Carvalhosa (Da Cleptocracia para a Democracia”, pgs. 55 e 74) fica perfeitamente escancarada a desigualdade entre os novos candidatos e os já titulares de mandatos legislativos. Estes dispõem de um exército de "assessores" (cabos eleitorais), da estrutura inteira do gabinete, verbas para correio, gasolina etc. e, principalmente, das emendas individuais ao orçamento, consistentes em verbas públicas que cada parlamentar pode destinar, livremente, a qualquer atividade de interesse de seus apoiadores (seu curral eleitoral) e que o Chefe do Executivo não pode deixar de atender.

Essa situação de patente desigualdade viola o disposto no Art.14 da CF, no sentido de que "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos". Tal a importância disso para a própria sobrevivência do sistema republicano democrático, que a matéria é disciplinada já diretamente pelo texto constitucional. Numa leitura descuidada, que não ultrapasse os limites da literalidade, essa parte final poderia significar, apenas e tão somente, uma proibição ao voto de qualidade. Mas, na verdade, aí está dito muito mais: está afirmado o princípio da igualdade entre os eleitores, que determina, entre outras coisas, a igualdade de informação eleitoral, a igualdade de acesso aos locais de votação, a proteção contra influências do poder econômico e, também, do poder político.

O parágrafo 9º, desse Art. 14, determina a edição de uma lei complementar (a atual LC nº 135, de 04/06/10) estabelecendo casos de inelegibilidade, para assegurar, entre outras coisas, “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Positivamente esses objetivos não serão concretizados nas eleições municipais de 2020, pois o voto não será igual para todos, dada a influência dessas vantagens todas no momento de escolha de seu candidato pelo eleitor. A liberdade de voto de cada eleitor será fatalmente tisnada pelas gritantes diferenças entre os candidatos, em favor daqueles que já estão no exercício de função pública.

Tradicionalmente, as eleições eram marcadas pelo abuso do poder econômico, especialmente porque grandes empresas, que mantinham contratos superfaturados, faziam generosas doações. Esse grave problema foi, em grande parte, solucionado quando o STF declarou inconstitucional o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4650, que depois foi incorporado à legislação em 2015. Para as eleições deste ano, a Resolução TSE nº 23.607/2019 disciplina rigorosamente o recebimento de doações e os gastos dos partidos. Todas as doações devem ser devidamente identificadas, inclusive pelo CPF do doador, e feitas por via bancária (não se admite doação em dinheiro), devendo o partido divulgar tais doações, com os nomes dos doadores e respectivos valores. Isso não acaba com os abusos de poder econômico, pois sempre haverá meios de contornar os obstáculos, mas, sem dúvida, contribui muito para a melhoria da representatividade.

Entretanto, resta o abuso de poder político, pois, salvo raríssimas exceções, quem exerce o poder normalmente pretende ou postula nele se perpetuar, seja por si mesmo, seja mediante sua sucessão por alguém de sua confiança ou, no mínimo, de seu grupo político. Isso mostra o especial cuidado que se deve ter com a influência que detentores de cargos políticos possam ter sobre o processo eleitoral. Se, de um lado, é perfeitamente legítimo que um partido político pretenda atingir e permanecer no poder, por outro lado, é preciso assegurar a possibilidade de alternância no poder, pois sem isso não existe democracia. Os princípios e normas que disciplinam as atividades político-partidárias e eleitorais visam assegurar essa possibilidade de alternância, estabelecendo limites à atuação dos postulantes, limites esses cuja ultrapassagem configura abuso.

O tema abuso de poder costuma ser objeto de estudo pelos administrativistas porque esse fenômeno ocorre com inquietante frequência no exercício da função administrativa. Mas ele pode também ocorrer na prática dos chamados atos políticos ou de governo, tendo como sujeitos agentes políticos tanto do Executivo quanto do Legislativo. Nestes últimos casos, algumas vezes a ilicitude está voltada para a obtenção de vantagens indevidas de ordem econômica, mas também ocorre com demasiada frequência motivada por propósitos partidários e especialmente eleitorais, violando a legitimidade do processo eleitoral. Em síntese, ocorre abuso de poder político quando uma autoridade pública, no uso de prerrogativas inerentes ao poder/dever de que está investida, ultrapassa os limites da legalidade e da legitimidade, ainda que inconscientemente, produzindo ou podendo produzir situações de indevido favorecimento a correligionários, aliados ou determinados postulantes a cargos eletivos.

O abuso de poder no processo eleitoral é um problema bastante sério, quando decorrente de fatos ou situações que efetivamente ocorrem no âmbito da sociedade. A dificuldade de solução aumenta muito quando se inventa como fator de abuso algo evidentemente despropositado, como é o caso do suposto abuso de poder religioso. No âmbito do TSE, sustenta o ministro Edson Facchin: "A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade". Do lado oposto, o ministro Alexandre de Moraes adverte que: "Não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses assim como os demais grupos que atuam nas eleições." (Abuso de poder religioso, OESP 02/07/20).

O posicionamento do ministro Facchin, como oportunista e faccioso, foi destacado em artigo do jornalista Fernão Lara Mesquita ("Notícia de falecimento", OESP, 07/07/20), lembrando que, na caminhada para a tomada do poder, um passo importante foi "cooptar a Igreja Católica, que tinha a capilaridade nacional, sem a qual não se chega ao poder". "Mas o mundo dá voltas... A partidarização da Igreja Católica fez a maioria dos brasileiros mudar de religião. Não por acaso, o ministro Facchin, que veio desse catolicismo militante, teve a ideia de propor que também o "abuso de poder" religioso" seja declarado "antidemocrático", o bastante para derrubar um governo eleito."

É preciso lembrar que a influência recíproca entre governo e religião sempre existiu, desde que o mundo é mundo. No Brasil, a religião católica já foi oficial e, durante muito tempo, foi absolutamente predominante. Há uma infinidade de cidades e acidentes geográficos com nomes de santos católicos e os feriados religiosos são também católicos. Nunca houve objeção quanto a isso, pois se trata de um valor aceito pela coletividade social brasileira. Porém, agora, há um sensível crescimento das igrejas cristãs evangélicas, com uma forte representação no Legislativo. Em resumo, não se pode ignorar que o ministro Fachin foi ativista de esquerda e está adotando um posicionamento claramente político, travestido de questão constitucional.

Em síntese, já é mais do que tempo de se abandonar a legislação eleitoral temporária e casuística. A normalidade institucional e a maturidade democrática são incompatíveis com o amoldamento da legislação aos interesses dos detentores temporários do poder. Somente uma legislação permanente, disciplinando a atividade política partidária e eleitoral com o propósito de definitividade, ou, pelo menos, de constância, de continuidade, pode trazer um aprimoramento técnico e moral, além da segurança e da certeza jurídicas.

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