segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O papel do controle externo brasileiro durante o surto epidemiológico da Covid-19.

Por: Jorge de Carvalho (Contador, professor, escritor e auditor de controle externo do TCMSP)


Logo no início do surto epidemiológico da Covid-19 no Brasil, houve uma grande preocupação das Cortes de Contas locais acerca da estratégia de atuação do controle, uma vez que medidas cautelares ou mesmo a instauração de fiscalizações tradicionais poderiam resultar na demora no oferecimento de serviços públicos pelos Poderes Executivos, destacando-se aqueles atrelados às áreas de saúde, assistência e mesmo as de cunho de auxílio financeiro. 

Assim, ainda em março deste ano foi editada uma Resolução de autoria de várias instituições representativas dos Tribunais de Contas: a Resolução Conjunta Atricon/Abracom/Audicon/CNPTC/ IRB nº 1, de 27 de março, dispondo sobre diretrizes e recomendações quanto às medidas que pudessem ser adotadas pelos Tribunais de Contas, de modo uniforme e colaborativo com os demais poderes, para minimizar os efeitos internos e externos decorrentes da pandemia do novo coronavírus.

Nesse documento foram expedidas recomendações a todos os Tribunais de Contas para que suspendessem prazos processuais, evitassem a implementação de ações de controle no setor de saúde para não gerar obstáculos ao desempenho do trabalho dos profissionais da área, orientassem os jurisdicionais sobre contratações temporária de pessoal, licitações e parâmetros extraordinários em face da declaração de calamidade nacional, entre outros assuntos. Contudo, é de bom tom frisar que evitar fiscalizações não significa inação do controle e já temos exemplos de trabalhos cirúrgicos de combate a fraudes, tais como o realizado pelo TCE-RJ em auditoria sobre compra de respiradores do Estado do Rio de Janeiro, no qual foi constatado que as empresas contratadas não possuíam capacidade de fornecer a quantidade negociada.

Mas o quesito “orientação” merece uma atenção especial pois, como se sabe, existem 33 Tribunais de Contas no Brasil e muitos temas técnicos carecem de uniformidade interpretativa, ou, no mínimo, de uma menor divergência de entendimentos pelos órgãos responsáveis pelo controle externo governamental. Isso representa uma fragilidade do sistema Tribunais de Contas, maximizando riscos de tratamentos diferenciados para situações análogas, com impactos negativos diretos no desenvolvimento de políticas públicas ou na forma de apresentação de informações financeiras e orçamentárias à sociedade.

Daí ser louvável a iniciativa do Conselho Nacional dos Presidentes dos Tribunais de Contas, o CNPTC, que, contando com o suporte técnico de diversos Auditores de Controle Externo do país, editou uma obra denominada “Contribuição ao Sistema Tribunais de Contas em Tempos de Coronavírus”, composta por cinco pareceres técnicos que versam sobre os mais variados assuntos. Um desses assuntos é a uniformização da contabilização e prestação de contas dos recursos destinados ao combate da pandemia, tratada no Parecer Técnico nº 4, que tomou por base a Nota Técnica nº 12.774/20, da STN.

Aqui, cabem algumas ponderações acerca do papel do controle externo no cenário atual. Primeiro é preciso relembrar que o grande propósito dos Tribunais de Contas é contribuir para o aperfeiçoamento das políticas públicas, ou seja, dos serviços postos à disposição da coletividade, e isso é realizado de variadas formas: pela emissão de recomendações e determinações bem fundamentadas aos governantes, encaminhamentos estes que devem ter como foco as causas-raízes de eventuais não conformidades detectadas; pela fiscalização do bom e regular emprego dos recursos públicos; e pela redução da assimetria informacional existente entre Governo e Sociedade, mediante emissão de opinião com razoável segurança acerca da adequação das demonstrações financeiras divulgadas, em todos os seus aspectos relevantes.

Tudo isso está diretamente relacionado à prestação de contas e à transparência das ações de governo. E, para que os Tribunais de Contas cumpram o seu papel, é fundamental que desenvolvam suas auditorias de forma estruturada e normativamente respaldadas (ou seja, seguindo as Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público - NBASP), com critérios objetivos e sem vieses interpretativos que acabam por piorar a compreensão pelos receptores das informações, inclusive com orientações que muitas vezes induzem os jurisdicionados a tratarem fatos sob a ótica particular do controle externo, nem sempre aderente às normas vigentes. É o que vemos, por exemplo, quando um Tribunal de Contas determina que Municípios apliquem no mínimo 25% dos recursos tratados no Inciso II, art. 5º da LC 173/2020 em manutenção e desenvolvimento do ensino, o que é claramente fruto de alargada criatividade interpretativa, que excede o que está consignado no texto legal.

Portanto, iniciativas como a do CNPTC, direcionadas à uniformização de entendimentos, são muito importantes. Além desta, vale ressaltar também o Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre a STN, o IRB e a Atricon, que já apresenta alguns resultados, cabendo destacar a produção de diagnósticos sobre pontos conflitantes na avaliação de temas contábeis pelos Tribunais de Contas e o desenvolvimento de um plano de ação para incentivo da realização de auditorias financeiras pelo controle externo, o que contribuirá sobremaneira para a melhoria da qualidade das demonstrações contábeis divulgadas pelos Governos.

No tocante aos recursos que estão sendo direcionados para enfrentamento da pandemia, embora o controle externo tenha adotado inicialmente postura colaborativa, é importante frisar que os riscos envolvendo a utilização das verbas estão mapeados pelos Tribunais e que a transparência deve ser a tônica, sendo muito provável, inclusive, a instauração de procedimentos fiscalizatórios sobre o uso dos recursos em um momento posterior. Assim, os gestores devem ter atenção especial com seus portais de transparência, sendo alvissareira a observância das diretrizes que integram o documento “Recomendações para transparência de contratações emergenciais em resposta à Covid-19”, de autoria do TCU em conjunto com a organização Transparência Internacional.

Os gestores públicos não devem ter receio de adotar todas as providências que estão legalmente ao seu alcance para contornar os efeitos da pandemia que vivemos. Nosso arcabouço legal contempla regras que estabelecem que devem ser sopesados, na avaliação pelos órgãos de controle, os obstáculos e dificuldades reais do agente público no momento da sua ação, inclusive tendo sido editada recentemente a Medida Provisória 966, para evitar o famigerado “apagão das canetas”.

O que se deve ter em mente é que a accountability é inerente ao exercício da função pública. Assim, os gestores devem ter boas estruturas administrativas e de contabilidade, compreendendo pessoas, sistemas e processos que contribuam para o alcance da finalidade pública em completa aderência aos princípios e normas que regem a gestão governamental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário