A Constituição Federal brasileira determina a obrigatoriedade de prestação de contas por todos aqueles que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem recursos públicos
[1]. O comando constitucional visa garantir a
accountability por parte dos gestores governamentais, incumbidos da responsabilidade de aplicar as disponibilidades estatais em prol da sociedade, razão maior da organização do Estado Democrático, tal como concebido na Carta Magna nacional.
A materialização da prestação de contas dos gestores públicos se dá, principalmente, por meio do levantamento e divulgação periódica de informações financeiras, conforme padrão definido pelo órgão central de contabilidade da União, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN). De acordo com os dispositivos constantes do marco regulatório vigente, as prestações de contas abrangem, sobretudo, as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público (DCASP) e os relatórios exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Todos devem ser elaborados segundo o padrão disciplinado pela STN.
Com a divulgação dos resultados financeiros dos governos, tem-se, em parte, o cumprimento da exigência constitucional já citada. Todavia, para sua completa legitimação, é imprescindível a certificação da fidedignidade dos números apresentados pelos gestores públicos, o que se dá pela atuação de uma terceira parte independente na relação governo x sociedade: os Tribunais de Contas.
A participação dos Tribunais de Contas como asseguradores da exatidão e adequada apresentação dos dados financeiros dos governos deriva, substancialmente, da assimetria de informação característica do modelo estatal vigente, no qual, de um lado, aqueles que administram os recursos da coletividade desejam apresentar resultados que os legitimem na condição de gestores e, do outro, os provedores dos recursos que financiam o Estado (a sociedade) desejam saber de fato como o erário foi utilizado e os reais resultados obtidos com tal aplicação.
Entre os mecanismos empregados tecnicamente pelos Tribunais de Contas para propiciar a referida asseguração esperada pela coletividade (sem prejuízo de outros usuários das informações financeiras do setor público), se encontra a Auditoria Financeira.
De acordo com as normas inerentes a este tipo de fiscalização, em especial a
International Standard of Supreme Audit Institutions (ISSAI) 200, de autoria da
International Organization of Supreme Audit Institutions (Intosai), o processo de Auditoria Financeira envolve determinar, por meio da coleta de evidências, se as informações financeiras de uma entidade são apresentadas nas suas demonstrações de acordo com a estrutura de relatório financeiro e o marco regulatório aplicáveis
[2].
Ao contrário do que o senso comum possa sugerir, a Auditoria Financeira não é uma fiscalização legalista voltada apenas a certificar se os balanços públicos atendem ou não as regras contábeis vigentes. Seu principal objetivo é aumentar a capacidade das prestações de contas dos governos, contribuindo sim para o aprimoramento da accountability, mas, fundamentalmente, elevando o seu potencial para o atendimento de outra importante finalidade das informações financeiras: apoiar o processo decisório no setor público, por parte dos próprios governantes.
Ao tratar desta possibilidade, nota-se comumente um ceticismo geral de diversos estratos sociais envolvidos com a temática. Afinal, como os relatórios contábeis produzidos pelos governos poderiam subsidiar as decisões estatais, já que, distintamente da iniciativa privada, o lucro (ou prejuízo) não é o principal indicador de performance no setor público?
Essa discussão já vem sendo travada há algum tempo por instituições internacionais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional (FMI), cujo estudo de 2019, denominado “
A global Picture of public wealth”
[3], revela a importância de bem gerir não só a dívida estatal, mas também os ativos existentes.
Segundo o FMI, uma melhor gestão dos ativos públicos poderia elevar o produto interno bruto em 3% ao ano, pela geração de receitas extraordinárias, o que representa quantia maior que a despendida com pagamento do serviço da dívida por vários países desenvolvidos.
Em outro estudo intitulado “
Putting public assets to work” (2021)
[4], Dag Detter e Shayne Kavanagh citam que “Os governos locais estão sentados em uma ‘mina de ouro’ virtual sem perceber. Assim como um particular ou uma empresa usa ativos (como máquinas ou edifícios) para gerar renda, os governos podem gerar renda de seus ativos”.
Os autores destacam as cidades de Copenhague (Dinamarca) e Hamburgo (Alemanha) como bons exemplos, nesse particular. Ambas criaram “Urban Wealth Funds” (Fundos de Riqueza Urbana, em tradução livre), os quais, por meio de gestão profissional, passaram a administrar terrenos e instalações subutilizadas, bem como serviços públicos nos setores de transportes e infraestrutura, gerando assim recursos suficientes para reconstruir áreas urbanas abandonadas em atraentes localizações residenciais e comerciais.
No Brasil, já há bons cases de resultados gerenciais positivos decorrentes de encaminhamentos constantes de Auditorias Financeiras conduzidas por Tribunais de Contas, aí se destacando a melhoria na gestão dos créditos federais inscritos em dívida ativa, após atuação do Tribunal de Contas da União (TCU).
Em consonância com diversas recomendações e determinações do TCU para aprimoramento das práticas contábeis relacionadas à dívida ativa da União, foi instituído Grupo Técnico no Poder Executivo federal, mediante Portaria SE/MF 956/2016, com o objetivo de elaborar projeto para classificação dos créditos inscritos em dívida ativa de acordo com o seu potencial de recuperação. Consequentemente, foi publicada a Portaria MF 293/2017
[5], definindo tais parâmetros.
A regulamentação possibilitou estratificar os créditos da União inscritos em dívida ativa em quatro faixas, com o desreconhecimento contábil das faixas inferiores, culminando na real evidenciação dos recebíveis no ativo e no direcionamento dos esforços da área jurídica do Poder Executivo para os melhor classificados qualitativamente, o que resultou na elevação da arrecadação da dívida ativa de R$ 14,5 bilhões em 2016 para R$ 25,1 bilhões em 2017, R$ 23,9 bilhões em 2018 e R$ 24,4 bilhões em 2019
[6].
Em outro exemplo, agora no âmbito dos ativos físicos, recente fiscalização financeira empreendida na maior cidade do país pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP)
[7] destacou a subavaliação do ativo da Prefeitura em razão da ausência de reconhecimento de imóveis cujos benefícios, riscos e controle pertencem à municipalidade.
Um desses imóveis, situado no centro da cidade e avaliado ao valor de R$ 36,8 milhões em 31/12/22, se encontra abandonado há mais de uma década. Anúncio formalizado pela Prefeitura em 2010 oficializava sua destinação para funcionamento da sede da Secretaria de Educação, contudo, o edifício permanece desocupado e sujeito a invasões.
Aliás, este imóvel já foi outrora reivindicado pelo Movimento Sem Teto São Paulo e alvo de investigações policiais em função de indícios de sua utilização como central logística de distribuição de drogas e armas pela facção criminosa do Primeiro Comando da Capital (PCC)
[8].
E o que a Auditoria Financeira tem a ver com isso? Ora, a constatação da subavaliação do ativo face ao não reconhecimento do imóvel enseja o adequado tratamento da informação pela Prefeitura, não apenas quanto à correção do balanço, mas também no tocante à gestão do bem.
Reconhecer contabilmente o ativo significa muito mais do que evidenciar o valor que aquele bem representa. A partir de então, passa a ser necessário o acompanhamento da base informacional que subsidia o registro contábil (integrante do chamado “sistema estruturante”, nesse caso o Sistema de Bens Patrimoniais Imóveis - SBPI), visando a sua constante representação fidedigna ao longo do tempo. Esse acompanhamento indubitavelmente ocasionará questionamentos quanto à destinação do patrimônio estatal ora tratado. Se não pelos próprios gestores governamentais, certamente pelo órgão de controle externo (o TCMSP).
Verifica-se, portanto, que a Auditoria Financeira é um componente vital ao processo de prestação de contas, accountability e tomada de decisão no setor público, com o potencial de contribuir significativamente para a melhoria da gestão governamental como um todo, em última instância.
Por isso, sua realização pelos 33 Tribunais de Contas do Brasil deve ser massivamente estimulada, já que as últimas avaliações empreendidas pelas próprias entidades representativas do controle externo nacional denotam seu desenvolvimento ainda incipiente
[9].
Nesse particular, destacam-se algumas importantes iniciativas, tais como o Encontro Nacional de Auditoria Financeira dos Tribunais de Contas do Brasil (ENAF-TC), promovido pelo TCMSP em parceria com o Instituto Rui Barbosa (IRB) nos últimos dias 25 e 26/05/23, reunindo servidores de todos os órgãos de controle externo do país para tratar das nuances do processo, compartilhar experiências e alavancar sua execução.
Essas e outras ações com propósito similar são desejáveis para que os números divulgados nas demonstrações contábeis dos Governos, por todos os Poderes e em todas as esferas da federação, representem muito mais do que um simples procedimento burocrático que pouco agrega à gestão estatal, e sim, que garantam o cumprimento de todos os objetivos da informação contábil no setor público, expressamente consignados na sua Estrutura Conceitual.
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[1] Constituição Federal de 1988, art. 70, parágrafo único.