A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece o prazo de quatro anos para mandatos de prefeitos, governadores estaduais e do Presidente³, com a possibilidade de haver reeleição, de forma que o tempo máximo de administração ininterrupta por um mesmo gestor, no Poder Executivo dos entes federados, se limita a oito anos.
Pode parecer muito, mas mesmo em hipóteses de reeleições, as demandas e os desafios inerentes à gestão governamental em território nacional são tantas e de tamanha diversidade, que demandam um sofisticado planejamento direcionado à promoção da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e ao progresso social.
Mesmo com um rigoroso processo de planejamento, muitas políticas públicas não serão concretizadas em menos de uma década, com destaque para as que ensejam intervenções econômicas, urbanísticas e culturais de grande impacto, aí se enquadrando algumas ações categorizadas nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU)4, como a erradicação da pobreza, a disponibilização de água potável e saneamento em larga escala, e atividades de combate às mudanças climáticas. Não à toa, a expectativa de alcance dos objetivos da ONU é de longo prazo, findando-se em 2030.
Logo, programas governamentais complexos e de relevante impacto social dificilmente terão duração adstrita a um (ou dois) mandato(s) de um prefeito, governador ou do Presidente, sendo imprescindível planejar propostas de médio e longo prazo que perpassem, de forma interconectada, os ciclos de um governo e que reflitam políticas efetivas de Estado, com indicadores claramente definidos no que tange às metas desejadas.
Ocorre que, para a adequada construção de tal planejamento, são indispensáveis informações financeiras que evidenciem a viabilidade do que deve ser feito para que se alcancem os objetivos propostos. Quando se trata de programas de longo prazo, por óbvio, os dados a serem utilizados devem possuir atributos preditivos e confirmatórios que propiciem uma visão de maior alcance, não restrita a curtos ciclos de governo.
O processo de planejamento financeiro brasileiro é constitucionalmente balizado por um conjunto de leis5 com alcance fixado em períodos de quatro anos, mas que se utilizam de informações lastreadas em uma espécie de fluxo de caixa otimizado, onde os recursos disponíveis são considerados como aqueles que de fato ingressaram nos cofres públicos, e os gastos são computados quando da materialização do intento do gestor, configurado pelo primeiro estágio da execução orçamentária da despesa denominado “empenho”. É o conhecido “regime de base modificada” (arrecadação para receitas e empenho para despesas) para registro do orçamento público6.
A utilização de informações geradas segundo esse regime, embora úteis para o embasamento de alguns processos decisórios mais imediatos, pode tolher a compreensão do aparato estatal em perspectiva ampla, ou seja, de quais recursos em sentido geral a administração pública conta para propiciar serviços aos cidadãos e do que está comprometido em lapsos temporais mais dilatados.
Portanto, apesar de importante sob variadas perspectivas (principalmente na do controle por parte do parlamento e da sociedade), o uso exclusivo do orçamento como subsídio às decisões dos gestores públicos pode causar uma verdadeira miopia, já que os administradores terão sempre um campo de visão de curto alcance ao utilizar apenas esse instrumento para respaldar suas análises.
É por isso que a geração de informações econômicas com base no regime de competência, no qual as receitas e despesas são contabilmente reconhecidas no momento em que ocorrem, e não quando são de fato arrecadadas ou pagas, é inegavelmente salutar à tomada de decisão em ambiente governamental. Embora seja, de certa forma, uma novidade das entidades públicas em razão do nosso marco legal, o regime de competência é largamente utilizado pela contabilidade das empresas em nível global há muitas décadas.
A Contabilidade Pública é a área de conhecimento aplicada que se destina a estudar e estabelecer as técnicas de sistematização e estruturação dos diversos registros relacionados às finanças governamentais, não só do controle do orçamento público, como também da gestão de todos os bens, direitos e obrigações das entidades do referido setor sob o ponto de vista financeiro e de geração de potencial de serviços à sociedade. A forma na qual esses registros se apresentam para os diversos usuários e para a sociedade tem o nome de demonstrações financeiras ou contábeis. Seguramente, pode-se afirmar que a esmagadora maioria das informações de finanças públicas divulgadas e utilizadas para as decisões e para os mais diversos fins possui na Contabilidade a sua principal fonte.
No início dos anos 90 houve significativas mudanças no setor público, em razão de aprimoramentos de concepções de gestão, os quais resultaram em um aumento da complexidade das transações das entidades e na necessidade de obtenção de informações mais abrangentes para fins de tomada de decisão pelos governos. Assim, o foco da Contabilidade Pública nessa transição foi agregar à ótica “míope” de base modificada do orçamento, a visão mais abrangente e completa do regime de competência.
Nesse sentido, iniciou-se, ao final da década de 90, um esforço de convergência normativa mundial visando a comparabilidade das informações financeiras entre os países. Esse processo, começou a ser implementado no Brasil em 2008, com a liderança conjunta da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e representa a adoção e implementação das International Public Sector Accounting Standards (IPSAS), normas que são a referência em mais de 150 países e que devem ser introduzidas no setor público brasileiro até o ano de 2024, conforme o cronograma estabelecido pelas entidades mencionadas.
Para ilustrar os benefícios dos padrões que estão sendo adotados, há um exemplo, de certa forma, recente, e que representa um “divisor de águas”: a Crise da Dívida Soberana (Sovereign Debt Crisis), ocorrida em em meados de 2007, mas ainda com alguns reflexos nos dias atuais, com destaque para a situação enfrentada pela Grécia.
O caso emblemático daquele país demonstrou que compromissos salariais e de pensões do setor público, ao impulsionarem o crescimento da dívida pública (em mais de 120% do PIB), juntando-se aos sucessivos déficits orçamentários, acabaram por reduzir a confiança dos investidores e obrigaram o país a buscar auxílio da União Europeia, fazendo com que a crise se alastrasse para outros países da Zona do Euro.
Verificou-se que havia falta de transparência das informações fiscais da Grécia no período pré-crise, trazendo à tona o quanto a disponibilização tempestiva e íntegra dessas informações é essencial para a atuação dos governos, ao permitir avaliações mais precisas por parte de investidores e analistas e submeter a condução das políticas públicas ao crivo da sociedade, auxiliando, assim, na prevenção de crises de larga escala e na correta precificação dos títulos públicos.
Em 2018, o Fundo Monetário Internacional (FMI), por intermédio de sua publicação bianual denominada Fiscal Monitor, apresentou um estudo intitulado Managing Public Wealth7. No referido estudo, a percepção geral com base em dados empíricos é a de que o conjunto das demonstrações financeiras, quando observado o regime de competência, fornece tudo aquilo que o estado possui (ativos) e deve (passivos), oferecendo um diagnóstico fiscal mais abrangente, indo além dos consagrados conceitos de dívida pública e déficits conforme definidos na teoria econômica e utilizados na gestão orçamentária em base modificada. O estudo concluiu que quando os governos fazem o registro integral dos ativos públicos e os gerenciam adequadamente, as receitas, consequentemente, são afetadas positivamente e, além disso, uma análise mais completa dos balanços públicos e dos bens, direitos e obrigações apresentados, permite uma melhor gestão de riscos e elaboração de políticas públicas.
O estudo do FMI endereça o caso da Grécia, pois, segundo os seus autores, “o regime de competência demonstra uma ferramenta para lidar com a resiliência das finanças públicas”, identificando os riscos nas demonstrações contábeis e permitindo que os governos consigam mitigar ou gerenciar esses riscos em um momento preliminar, e não quando a crise já se encontra instalada e os seus efeitos, como a insolvência generalizada, estejam sendo vivenciados. Adiciona-se como exemplo dessa realidade, a atual crise decorrente dos efeitos econômicos da pandemia da Covid-19.
No caso do Brasil, pode-se dizer que a mais recente crise fiscal vivenciada em todas as esferas federativas e originada em meados de 2014, também se deve, em parte, à falta de foco nas informações oriundas da contabilidade pública por competência. Na lógica orçamentária pátria, a preocupação principal reside nos desembolsos a serem efetuados em determinado exercício e não no grau de comprometimento dos ativos e das receitas públicas ao longo do tempo. Ocorre que a avaliação do estoque da dívida é fundamental para a tomada de decisão no presente.
Por exemplo, em um financiamento de longo prazo, a lógica orçamentária está muito mais focada nos pagamentos periódicos de amortização do principal e de juros, que vão impactar sucessivos exercícios e comprometer as disponibilidades do governo, ou seja, em recortes sucessivos e anuais. A lógica da contabilidade por competência, por sua vez, avalia e mensura, no presente, o quanto já foi comprometido dos seus ativos, prescindindo de projeções e modelos estatísticos, que podem ser utilizados muito mais como complemento do que como uma informação principal para subsidiar a tomada de decisão.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), muito embora tenha representado uma importante tentativa de aprimoramento do marco legal do orçamento público, ao inserir novos conceitos, indicadores e limites para a atuação dos gestores governamentais, ainda manteve boa parte de seu foco em questões orçamentárias, uma vez que muitos dos seus limites e parâmetros dependem da correta aplicação dos conceitos atrelados ao orçamento.
O que se viu depois da sua vigência é que, muito embora os órgãos de controle tenham adquirido um ferramental significativo para o exercício das suas atribuições fiscalizatórias, os problemas persistem e há, cada vez mais, muita criatividade na interpretação de seus preceitos. Um dos principais alvos de burla é o critério de apuração de despesas de pessoal, que devem, segundo a lei, ser apurados por competência (muito embora o conceito legal de “competência”, ou sua interpretação, não seja exatamente o mesmo daquele pregado pela teoria contábil).
Em razão das experiências apresentadas, vê-se que o orçamento e suas projeções, bem como os indicadores de gestão fiscal, não podem ser os únicos direcionadores das decisões dos gestores públicos. Nessa lacuna se insere a contabilidade pública por competência e, sendo assim, o setor público deveria olhar mais para os indicadores obtidos das demonstrações contábeis para tomar as suas decisões.
Infelizmente, os governos tendem a manter a gestão da informação contábil em segundo plano e continuam respaldando suas decisões na lógica orçamentária, fazendo com que sejam detectados os mesmos problemas em sucessivos períodos. Deixam de lado a necessidade de contratação e capacitação de profissionais e a estruturação dos sistemas contábeis, que são requisitos para a implantação da contabilidade por competência. O que se alega, em geral, é que não é necessário estruturar esse fluxo de informações, uma vez que os sistemas orçamentários são bem desenvolvidos e já cumprem sua função de subsidiar a decisão. Ocorre que, assim, o Estado permanece com a visão “míope” da gestão de caixa ou de base modificada e perde a oportunidade de gerir melhor seu patrimônio, suas receitas e realizar a gestão de custos dos serviços públicos.
Com uma visão desfocada em virtude da miopia orçamentária, há o acompanhamento apenas dos desembolsos, em vez da avaliação do comprometimento da capacidade do ente em cobrir despesas e passivos, no presente e no futuro. Faz-se a medição do gasto público em determinada linha de ação governamental, sem avaliar os custos das políticas sob métricas verificáveis e comparáveis e as possíveis alternativas à ação do Estado. Realiza-se a concessão de benefícios de pessoal e previdenciários, avaliando somente a conjuntura do orçamento corrente, sem se adequar ao grau de comprometimento das gerações futuras. Isso só para citar alguns dos principais equívocos em decisões recorrentes, tomadas com base somente nas informações orçamentárias e fiscais, as quais são incompletas por sua natureza.
Por tudo isso, fica evidente que a contabilidade por competência representa as lentes destinadas a corrigir a miopia orçamentária tão presente no cenário atual das finanças públicas do Brasil. Sua adoção aperfeiçoará sobremaneira a capacidade das demonstrações como ferramental para subsidiar a tomada de decisão dos caminhos mais acertados para a consecução das políticas públicas de maneira efetiva, equilibrada e economicamente sustentável.
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¹ Jorge de Carvalho é Auditor do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) e membro do Grupo Assessor do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) para convergência das normas internacionais de contabilidade aplicadas ao setor público. E-mail: profjcarvalho@hotmail.com
² Leonardo Nascimento é Especialista Sênior em Gerenciamento Financeiro do Banco Mundial, membro do Grupo Assessor do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) para convergência das normas internacionais de contabilidade aplicadas ao setor público e ex-membro do International Public Sector Accounting Standards Board (IPSASB),. E-mail: lnascimento@worldbank.org
³ Constituição da República Federativa do Brasil, art. 28, Inciso I do art. 29 e art. 82.
5 Art. 165 da Constituição Federal: “Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: I - o plano plurianual; II - as diretrizes orçamentárias; III - os orçamentos anuais.”
6 Conforme estabelecido no art. 35 da Lei Federal 4.320/64.