O
Brasil é composto por 5.570 municípios, 26 estados, o Distrito Federal e a União.
É comum que cada um desses Entes tenha a sua organização administrativa
própria, para fazer jus às suas necessidades de autogoverno. O Município de São
Paulo, por exemplo, possui mais de 70 órgãos e 130 unidades orçamentárias, 5
autarquias, 2 fundações, uma empresa estatal dependente e 8 independentes, além
da Câmara de Vereadores e do Tribunal de Contas do Município, estrutura
necessária para gerir os mais de 50 bilhões de orçamento anual da maior cidade
do país.
Cada
um desses órgãos e entidades é responsável pelo registro dos atos e fatos
ocorridos no seu cotidiano. Assim, a responsabilidade primária da correta
representação patrimonial, orçamentária e financeira é da própria entidade governamental
que efetua o registro contábil da operação.
Com
base nos seus registros, cada entidade pública elabora as suas demonstrações
contábeis individualizadas. Entretanto, compete ao Tesouro Nacional consolidar
os dados de todos os Entes Subnacionais, além dos seus próprios, visando a
confecção do Balanço do Brasil, cuja designação técnica é “Balanço do Setor
Público Nacional – BSPN”. Esse balanço deve espelhar a situação do país e a sua
publicação é anual[1],
conforme obrigatoriedade estabelecida pelo art. 51 da Lei de Responsabilidade
Fiscal – LRF.
Ocorre
que, num cenário estrutural tão vasto e complexo, não é rara a ocorrência de
divergências metodológicas e de entendimentos quando do registro contábil
efetuado pelas diversas entidades do setor público. Essas discrepâncias no
tratamento contábil prejudicam a geração de informações fidedignas e
comparáveis, contribuindo negativamente para a tomada de decisão pelos gestores
e para o controle a cargo da sociedade.
Inúmeros
são os casos de falta de padronização no registro contábil dos fenômenos
administrativos e econômicos no setor público. Há situações das mais simples às
mais discutíveis, destacando-se, por exemplo:
-
a classificação orçamentária inadequada de despesas, tais como as que se
referem a materiais e produtos sob encomenda, nas quais o critério para correto
enquadramento é o fato da matéria-prima ser ou não fornecida pela entidade
governamental[2];
-
o enquadramento orçamentário proposital de despesas com terceirização de mão de
obra (natureza de despesa 3.3.90.34) como serviços de terceiros – pessoa jurídica
(3.3.90.39), para burlar o cálculo da despesa com pessoal, cujos limites são
definidos pela LRF;
-
a alocação indevida de despesas de custeio (categoria econômica 3 – Despesas Correntes)
como gastos de capital (categoria
econômica 4 – Despesas de Capital), apenas para gerar uma falsa impressão de
que a administração pública está investindo, ou simplesmente para burlar leis
específicas que proíbem a aplicação de certos recursos vinculados em despesas
correntes (com manutenção da máquina pública);
-
a pluralidade de tratamentos para o registro da receita de depósitos judiciais
amparados pela Lei Complementar nº 151/2015, que são utilizados basicamente
para o pagamento de precatórios: há Entes que classificam os recursos como
receitas correntes; outros como de capital; e há também os que os enquadram
como ingressos extraorçamentários;
-
a omissão de reconhecimento de passivos contraídos, mas que não seguiram os
trâmites definidos na legislação aplicável, notadamente as Leis Federais nº
4.320/64 e 8.666/93;
-
a afetação indevida do resultado econômico do exercício em curso quando do
reconhecimento de fenômenos cujo fato gerador se deu em anos já encerrados, e
que deveriam, portanto, ser registrados como Ajustes de Exercícios Anteriores;
-
o reconhecimento tardio das retenções incidentes sobre serviços contratados,
apenas no momento da quitação da obrigação principal, bem como a falta de
critério no seu registro (impactos na natureza de informação orçamentária,
patrimonial e de controle do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público)[3];
-
as pendências de contabilização de saídas bancárias desprovidas de documentação
de suporte, ou o seu registro de maneiras diversificadas, quando realizado
(baixando-se banco contra VPD, ou criando-se outro ativo, representativo de um
eventual direito da administração pública pela subtração do recurso não adequadamente
comprovada);
-
a indefinição quanto à contabilização das transferências voluntárias: se afetam
o resultado do exercício quando do seu repasse/recebimento, ou se geram um
ativo e um passivo, para o concedente e convenente, de forma respectiva.
Como
se não bastassem as dificuldades de uniformização de registro contábil, há
também, em alguns casos, a ação proposital de gestores na geração de
demonstrativos e relatórios que não resultam, na íntegra, dos dados contábeis
existentes. Essa ação deliberada tem o condão de alterar a apresentação de
índices, indicadores e resultados, com base em interpretações próprias dos gestores
que os manipulam.
Incoerentemente
conhecida como “Contabilidade Criativa”, a atitude nada mais é do que uma
gestão criativa de resultados, cuja responsabilidade em muitas vezes extrapola
os limites de atuação do profissional de contabilidade.
É
o caso, por exemplo, da exclusão do imposto de renda retido sobre salários,
quando da apuração das despesas de pessoal do Ente, o que acarreta a
apresentação de um índice menor do que o real. Há, inclusive, Tribunais de
Contas que não só concordam, como estimulam tal prática, o que configura o
ápice da problemática posta, já que estes últimos são os responsáveis por
atestar a qualidade das contas prestadas pelos seus jurisdicionados.
Para
enfrentar os problemas de falta de uniformidade no tratamento da informação
contábil e de criatividade da gestão na elaboração de relatórios e
demonstrativos, duas ações encontram-se em curso: a primeira é a padronização
conceitual de entendimentos e a segunda, reside na implementação de uma
ferramenta tecnológica de captura de dados diretamente dos sistemas informatizados
de contabilidade das entidades governamentais.
A
uniformização conceitual vem ocorrendo no Brasil desde 2008, com a edição da
Portaria MF nº 184, marco normativo da adoção dos padrões internacionais de
contabilidade aplicada ao setor público pelo país. Já foram convergidas 11
IPSAS, as quais estão sendo gradualmente incorporadas ao MCASP, que é o filtro
normativo para aplicação dos padrões internacionais pelos contadores do setor
público.
Nesse
diapasão, é crucial que os profissionais de contabilidade da área pública
invistam permanentemente em capacitação, buscando a qualificação técnica
indispensável ao escorreito tratamento da informação passível de registro
contábil. Com contadores bem preparados, a tendência é que as divergências de
entendimentos sejam minimizadas, resultando em uma entrada de dados mais
homogênea e, consequentemente na geração de informação mais uniforme sob o
aspecto conceitual.
A
outra atitude visa evitar a manipulação de dados quando da elaboração de
demonstrações contábeis e relatórios fiscais: trata-se da Matriz de Saldos Contábeis – MSC, uma estrutura padronizada para
transferência de informações primárias de natureza contábil, orçamentária e
fiscal dos entes da Federação.
Os
Entes da Federação, a partir do ano de 2018, deverão encaminhar para o Tesouro
Nacional a MSC mensalmente, observando o leiaute definido pela Portaria STN nº
896, de 31/10/2017 e o seguinte cronograma:
-
União, estados, Distrito Federal e municípios das capitais dos estados: a
partir de janeiro de 2018;
-
municípios que possuem regime próprio de previdência, exceto as capitais de
estados: a partir de julho de 2018;
-
demais municípios: a partir de janeiro de 2019.
A
MSC viabilizará a geração automática de relatórios e demonstrativos por meio do
SICONFI. Sem a presença do elemento humano no tratamento da informação
contábil, os relatórios obedecerão os critérios pré-definidos de alimentação,
com base nas contas contábeis integrantes do PCASP. O Tesouro Nacional deve
divulgar os resultados gerados de forma ampla, o que fatalmente evidenciará as
divergências metodológicas existentes e exporá os Entes à opinião pública,
culminando na necessidade de justificativa técnica (e não política) para a
manipulação de dados.
Com
isto, espera-se que a Federação seja cada vez mais uniforme no que se refere
aos procedimentos contábeis, o que contribuirá sobremaneira para a geração de
um Balanço do Setor Público Nacional fidedigno e útil aos gestores, aos órgãos
de controle e à sociedade.
[1] O BSPN de 2016 está disponível no endereço
eletrônico:
[2] A classificação orçamentária das despesas
é padronizada em âmbito federal pela Portaria SOF/STN nº 163/2001.
[3] A Secretaria do Tesouro Nacional publicou
recentemente a Instrução de Procedimento Contábil nº 11, que trata da
contabilização das retenções. Disponível em:
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