segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Contas públicas: é preciso uniformizar entendimentos.

Por: Prof. Jorge de Carvalho



O Brasil é composto por 5.570 municípios, 26 estados, o Distrito Federal e a União. É comum que cada um desses Entes tenha a sua organização administrativa própria, para fazer jus às suas necessidades de autogoverno. O Município de São Paulo, por exemplo, possui mais de 70 órgãos e 130 unidades orçamentárias, 5 autarquias, 2 fundações, uma empresa estatal dependente e 8 independentes, além da Câmara de Vereadores e do Tribunal de Contas do Município, estrutura necessária para gerir os mais de 50 bilhões de orçamento anual da maior cidade do país.

Cada um desses órgãos e entidades é responsável pelo registro dos atos e fatos ocorridos no seu cotidiano. Assim, a responsabilidade primária da correta representação patrimonial, orçamentária e financeira é da própria entidade governamental que efetua o registro contábil da operação.

Com base nos seus registros, cada entidade pública elabora as suas demonstrações contábeis individualizadas. Entretanto, compete ao Tesouro Nacional consolidar os dados de todos os Entes Subnacionais, além dos seus próprios, visando a confecção do Balanço do Brasil, cuja designação técnica é “Balanço do Setor Público Nacional – BSPN”. Esse balanço deve espelhar a situação do país e a sua publicação é anual[1], conforme obrigatoriedade estabelecida pelo art. 51 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF.



Ocorre que, num cenário estrutural tão vasto e complexo, não é rara a ocorrência de divergências metodológicas e de entendimentos quando do registro contábil efetuado pelas diversas entidades do setor público. Essas discrepâncias no tratamento contábil prejudicam a geração de informações fidedignas e comparáveis, contribuindo negativamente para a tomada de decisão pelos gestores e para o controle a cargo da sociedade.

Inúmeros são os casos de falta de padronização no registro contábil dos fenômenos administrativos e econômicos no setor público. Há situações das mais simples às mais discutíveis, destacando-se, por exemplo:

- a classificação orçamentária inadequada de despesas, tais como as que se referem a materiais e produtos sob encomenda, nas quais o critério para correto enquadramento é o fato da matéria-prima ser ou não fornecida pela entidade governamental[2];

- o enquadramento orçamentário proposital de despesas com terceirização de mão de obra (natureza de despesa 3.3.90.34) como serviços de terceiros – pessoa jurídica (3.3.90.39), para burlar o cálculo da despesa com pessoal, cujos limites são definidos pela LRF;

- a alocação indevida de despesas de custeio (categoria econômica 3 – Despesas Correntes) como  gastos de capital (categoria econômica 4 – Despesas de Capital), apenas para gerar uma falsa impressão de que a administração pública está investindo, ou simplesmente para burlar leis específicas que proíbem a aplicação de certos recursos vinculados em despesas correntes (com manutenção da máquina pública);

- a pluralidade de tratamentos para o registro da receita de depósitos judiciais amparados pela Lei Complementar nº 151/2015, que são utilizados basicamente para o pagamento de precatórios: há Entes que classificam os recursos como receitas correntes; outros como de capital; e há também os que os enquadram como ingressos extraorçamentários;

- a omissão de reconhecimento de passivos contraídos, mas que não seguiram os trâmites definidos na legislação aplicável, notadamente as Leis Federais nº 4.320/64 e 8.666/93;

- a afetação indevida do resultado econômico do exercício em curso quando do reconhecimento de fenômenos cujo fato gerador se deu em anos já encerrados, e que deveriam, portanto, ser registrados como Ajustes de Exercícios Anteriores;

- o reconhecimento tardio das retenções incidentes sobre serviços contratados, apenas no momento da quitação da obrigação principal, bem como a falta de critério no seu registro (impactos na natureza de informação orçamentária, patrimonial e de controle do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público)[3];

- as pendências de contabilização de saídas bancárias desprovidas de documentação de suporte, ou o seu registro de maneiras diversificadas, quando realizado (baixando-se banco contra VPD, ou criando-se outro ativo, representativo de um eventual direito da administração pública pela subtração do recurso não adequadamente comprovada);

- a indefinição quanto à contabilização das transferências voluntárias: se afetam o resultado do exercício quando do seu repasse/recebimento, ou se geram um ativo e um passivo, para o concedente e convenente, de forma respectiva.

Como se não bastassem as dificuldades de uniformização de registro contábil, há também, em alguns casos, a ação proposital de gestores na geração de demonstrativos e relatórios que não resultam, na íntegra, dos dados contábeis existentes. Essa ação deliberada tem o condão de alterar a apresentação de índices, indicadores e resultados, com base em interpretações próprias dos gestores que os manipulam.

Incoerentemente conhecida como “Contabilidade Criativa”, a atitude nada mais é do que uma gestão criativa de resultados, cuja responsabilidade em muitas vezes extrapola os limites de atuação do profissional de contabilidade.

É o caso, por exemplo, da exclusão do imposto de renda retido sobre salários, quando da apuração das despesas de pessoal do Ente, o que acarreta a apresentação de um índice menor do que o real. Há, inclusive, Tribunais de Contas que não só concordam, como estimulam tal prática, o que configura o ápice da problemática posta, já que estes últimos são os responsáveis por atestar a qualidade das contas prestadas pelos seus jurisdicionados.

Para enfrentar os problemas de falta de uniformidade no tratamento da informação contábil e de criatividade da gestão na elaboração de relatórios e demonstrativos, duas ações encontram-se em curso: a primeira é a padronização conceitual de entendimentos e a segunda, reside na implementação de uma ferramenta tecnológica de captura de dados diretamente dos sistemas informatizados de contabilidade das entidades governamentais.

A uniformização conceitual vem ocorrendo no Brasil desde 2008, com a edição da Portaria MF nº 184, marco normativo da adoção dos padrões internacionais de contabilidade aplicada ao setor público pelo país. Já foram convergidas 11 IPSAS, as quais estão sendo gradualmente incorporadas ao MCASP, que é o filtro normativo para aplicação dos padrões internacionais pelos contadores do setor público.



Nesse diapasão, é crucial que os profissionais de contabilidade da área pública invistam permanentemente em capacitação, buscando a qualificação técnica indispensável ao escorreito tratamento da informação passível de registro contábil. Com contadores bem preparados, a tendência é que as divergências de entendimentos sejam minimizadas, resultando em uma entrada de dados mais homogênea e, consequentemente na geração de informação mais uniforme sob o aspecto conceitual.

A outra atitude visa evitar a manipulação de dados quando da elaboração de demonstrações contábeis e relatórios fiscais: trata-se da Matriz de Saldos Contábeis – MSC, uma estrutura padronizada para transferência de informações primárias de natureza contábil, orçamentária e fiscal dos entes da Federação.

Os Entes da Federação, a partir do ano de 2018, deverão encaminhar para o Tesouro Nacional a MSC mensalmente, observando o leiaute definido pela Portaria STN nº 896, de 31/10/2017 e o seguinte cronograma:

- União, estados, Distrito Federal e municípios das capitais dos estados: a partir de janeiro de 2018;

- municípios que possuem regime próprio de previdência, exceto as capitais de estados: a partir de julho de 2018;

- demais municípios: a partir de janeiro de 2019.

A MSC viabilizará a geração automática de relatórios e demonstrativos por meio do SICONFI. Sem a presença do elemento humano no tratamento da informação contábil, os relatórios obedecerão os critérios pré-definidos de alimentação, com base nas contas contábeis integrantes do PCASP. O Tesouro Nacional deve divulgar os resultados gerados de forma ampla, o que fatalmente evidenciará as divergências metodológicas existentes e exporá os Entes à opinião pública, culminando na necessidade de justificativa técnica (e não política) para a manipulação de dados.

Com isto, espera-se que a Federação seja cada vez mais uniforme no que se refere aos procedimentos contábeis, o que contribuirá sobremaneira para a geração de um Balanço do Setor Público Nacional fidedigno e útil aos gestores, aos órgãos de controle e à sociedade.



[2] A classificação orçamentária das despesas é padronizada em âmbito federal pela Portaria SOF/STN nº 163/2001.

[3] A Secretaria do Tesouro Nacional publicou recentemente a Instrução de Procedimento Contábil nº 11, que trata da contabilização das retenções. Disponível em:

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