Por: Jorge de Carvalho (autor do Blog)
O Senado aprovou no último dia 22 de junho o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 333/2020, objetivando a não inclusão, no cômputo do limite para despesas com pessoal estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), das despesas de mão de obra (atividade-fim) das organizações da sociedade civil contratadas pelo Poder Público para execução de atividades de competência governamental¹.
A principal justificativa para edição do referido ato legislativo² é a de que a inclusão de tais gastos no cômputo do limite legal representaria um aumento gigantesco das despesas de cada órgão contratante, provavelmente ultrapassando os limites da lei na maioria dos casos. Consequentemente, ocorreria a demissão dos funcionários das entidades contratadas ou o encerramento das parcerias.
A LRF, sancionada há mais de 20 anos, fixou limites para a despesa total com pessoal na União, Estados e Municípios com base nas suas respectivas receitas correntes líquidas (RCL), regulamentando o art. 169 da Constituição Federal. O objetivo é assegurar que as demais atividades intrínsecas ao regular funcionamento estatal (investimentos, aquisição de insumos, custeio da dívida etc) não sejam "estranguladas" por um exorbitante gasto com pessoal, comprometendo, em última instância, a prestação de serviços à sociedade.
No seu art. 18, a LRF define o que são despesas com pessoal e, no § 1º, expressamente prevê que os valores dos contratos de terceirização de mão de obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos devem ser contabilizados como "Outras Despesas de Pessoal", impactando o limite fixado.
A Secretaria do Tesouro Nacional (STN), órgão central de contabilidade federal, nos termos do Decreto Federal 6.976/09, detém a atribuição de editar o Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), orientando, entre outros, a correta elaboração dos relatórios exigidos pela LRF (Relatório Resumido da Execução Orçamentária - RREO e Relatório de Gestão Fiscal - RGF). No rol de relatórios integrantes do RGF encontra-se o Anexo 1 - Demonstrativo da Despesa Total com Pessoal, que visa à transparência da despesa com pessoal de cada um dos Poderes e órgãos com autonomia administrativa, orçamentária e financeira conferida na forma da Constituição.
Na edição vigente para 2022 (12ª ed.), o MDF estabelece que a parcela do pagamento referente à remuneração do pessoal que exerce a atividade fim do ente público, efetuado em decorrência da contratação de forma indireta, deverá ser incluída no total apurado para verificação dos limites de gastos com pessoal. Essa orientação já se fazia presente em edições anteriores do Manual, mas sua aplicação foi postergada para 2022 (por meio da Portaria STN 377/20), de forma a viabilizar tempo para adoção de providências administrativas efetivas pelos Entes Federados sem a extrapolação do teto legal quando da sua plena vigência.
O ato do Senado susta a Portaria STN 377/20 e, em consequência, deturpa o adequado controle de um dos pilares da LRF, que é o teto para realização de despesas com pessoal, inegavelmente o maior gasto de qualquer Prefeitura, Governo Estadual e da União. Sob a alegação de que a contratação de entidades da sociedade civil organizada não se enquadra no conceito de terceirização, os Senadores da República que se manifestaram favoravelmente ao PDL 333/20 se valem de restritiva interpretação linguística para garantir a continuidade da prática atualmente verificada em grande parte do território nacional. O efeito é a ausência de indicador fidedigno que possibilite uma análise não enviesada do comprometimento da receita com pessoal no presente e a correção de rumos em cenários de desajustes fiscais, buscando a sustentabilidade da ação governamental e a sua continuidade.
Independentemente da forma como a política pública é disponibilizada (se pelos órgãos e entidades integrantes da estrutura administrativa do Ente, ou de maneira indireta, com a contratação de uma OS/Oscip ou similar), o volume de despesas com pessoal deve ser controlado de maneira integral e uniforme. Assim, além da acurácia no cálculo do real comprometimento da receita, evita-se que o gestor público seja tolhido da opção de prestação direta de serviços, já que, em caso de proximidade dos limites prudencial e legal somente com servidores da máquina, fatalmente a única saída seria manter as organizações sociais (excluídas da apuração, nos termos resultantes do ato do Senado), mesmo em hipóteses de soluções inovadoras passíveis de operacionalização pelo próprio aparato estatal que gerassem melhor qualidade de atendimento aos cidadãos.
O efeito concreto da intervenção do Senado com a aprovação do PDL 333/20 é a fragilização da LRF, haja vista a camuflagem do exato percentual da RCL comprometida com a despesa de pessoal do Ente, elevando riscos de desajustes fiscais que podem culminar na interrupção da disponibilização de políticas públicas previamente instituídas e em regular funcionamento pela falta de sustentabilidade financeira, afetando adversamente a população.
Por tudo isso, a despeito dos futuros desdobramentos que advirão dos (esperados) debates em torno da ação do Legislativo Federal, os gestores governamentais (e os contadores públicos, responsáveis por subsidiar o levantamento de informações financeiras úteis ao processo decisório) devem estar alerta ao impacto das despesas de mão de obra (em atividade finalística) das entidades do terceiro setor contratadas, no custeio da máquina pública como um todo, antecipando-se a eventuais cenários indesejados que coloquem em risco a satisfação dos objetivos do Estado.
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¹ Senado aprova projeto que libera gasto com pessoal de organizações sociais — Senado Notícias
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