Por Elidie Palma Bifano e Rafael Palma Bifano
A contabilidade é uma ciência que contém um conjunto de princípios que orientam o registro e avaliação das informações de natureza econômica e financeira de uma certa entidade. Essas informações devem ser, acima de tudo, úteis para os usuários das contas dessa entidade. No caso das entidades com fins lucrativos, essas informações integram o chamado relatório financeiro, preparado de acordo com as determinações do Pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC 00 - R2). Essas informações têm como usuários os investidores e credores, bem como a sociedade e o poder público. O principal objetivo de um relatório financeiro é evidenciar a força de uma entidade ou de um grupo de entidades, no caso das demonstrações financeiras consolidadas.
A Lei nº 6404/76, em seu artigo 175 e seguintes, trata das demonstrações financeiras das entidades com fins lucrativos, companhias, as quais buscam retratar o fruto da atividade empresarial sob a performance financeira, associada ao fluxo de caixa e ao valor justo ou de realização de seus itens patrimoniais. A contabilidade tem uma visão prospectiva dos negócios, seu valor de realização, valor futuro orientado pelo mercado em operações entre partes independentes, posto que aos investidores não interessam fatos passados, mas oportunidades futuras, portanto, a linguagem contábil é orientada pelo interesse social voltado ao futuro. Por fim, de se destacar que o Brasil adotou, a partir de 2008, com a edição da Lei nº 11.638/07, os padrões internacionais de contabilidade, o IFRS.
Os dados financeiros dos entes públicos, no Brasil, são objeto da Lei nº 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. Essa lei trata da contabilidade pública brasileira, tendo instituído as normas para o balanço e orçamento públicos. Contudo, à luz das mudanças pelas quais a contabilidade passou, em todo o mundo, tendo como premissa a prevalência da essência econômica sobre a forma, também a contabilidade do setor público foi revista. Em outubro de 2016, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), ao adequar as normas contábeis das entidades públicas às chamadas Normas Internacionais de Contabilidade do Setor Público (Ipsas), publicou novas resoluções com vigência a partir de 1/1/2017, as quais tornaram obrigatório o uso dos padrões internacionais de contabilidade pelo setor público.
Assim, esse setor também dispõe de uma Norma de Contabilidade que trata da Estrutura Conceitual Brasileira de Contabilidade, datada de 23/9/2016, a exemplo do CPC 00, a qual orienta a estrutura conceitual para elaboração e divulgação de informação contábil de propósito geral pelas entidades do setor público. Essa norma voltada à estrutura conceitual dos relatórios contábeis, estabelece os conceitos que devem ser aplicados no desenvolvimento das demais Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público (NBCs TSP) do CFC. Além disso, tais conceitos são aplicáveis à elaboração e à divulgação formal dos Relatórios Contábeis de Propósito Geral das Entidades do Setor Público (RCPGs). Ainda, de acordo com essa norma, o objetivo principal da maioria das entidades do setor público é prestar serviços à sociedade, em vez de obter lucros e gerar retorno financeiro aos investidores (item 2), sendo que os RCPGs também fornecem informações aos seus usuários para subsidiar os processos decisórios e a prestação de contas e responsabilização (accountability).
O que se observa é que a contabilidades das entidades privadas volta-se à demonstração dos resultados de suas atividades e o retorno que o investidor dele deve extrair e, no caso do poder público, o retorno a ser obtido é apenas a prestação de serviços ao cidadão. Ainda, de acordo com o CFC, os governos e outras entidades do setor público devem responder frente àqueles que proveem recursos para que a máquina governamental opere de forma adequada, especialmente àqueles que proveem esses recursos por meio do pagamento de obrigações tributárias e de outras obrigações, destacando-se que os recursos arrecadados pelo Poder Público originam-se da imposição de tributos, bem como da cobrança de juros, de taxas sem natureza tributária, do recebimento de dividendos e de outras remunerações previstas em lei.
O objetivo da accountability, acima referida nas normas do CFC, ou prestação de contas e responsabilização, está vinculado aos orçamentos preparados pelos entes públicos e aprovados pelo Poder Legislativo, cabendo à sociedade a fiscalização dessas entidades públicas, direta ou indiretamente.
Por fim, em seu item 2.5 a manifestação do CFC indica que são usuários dos RCPGs, cidadãos que recebem os serviços do governo e de outras entidades do setor público e proveem parte dos recursos para esse fim. Assim, eles, os cidadãos são designados como usuários primários dos RCPGs. O mais interessante a se observar é que não temos convicção de que sequer, essas pessoas, tenham conhecimento de que podem ter acesso a tais informações e, além disso, esses relatórios financeiros interagem com o orçamento em dois diferentes momentos: (1) suprindo informações para elaboração do orçamento e (2) demonstrando a aplicação que foi dada aos recursos públicos.
Por fim a Portaria STN nº 634/13, do Tesouro Nacional, também dispõe sobre diretrizes, normas e procedimentos contábeis aplicáveis aos entes da Federação, com vistas à consolidação das contas públicas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, voltada ao processo de convergência aos padrões internacionais.
Considerando-se que a União adotou o IFRS, na modalidade voltada ao poder público, a leitura de suas demonstrações financeiras, seu balanço patrimonial, é extremamente interessante, pois permite extrair conclusões sobre como o poder público trata as finanças públicas, associadas ao fluxo de caixa e ao valor de realização de seus itens patrimoniais. Conceitualmente, qualquer administrador deve ter conhecimento dos riscos aos quais a entidade, pública ou privada, a seu cargo, está sujeita e, na hipótese de eles virem a se concretizar, contar com reservas de recursos suficientes para fazer frente a tal evento. Por certo, esse processo exige cautela para avaliar quais as perspectivas de cada risco vir a tornar-se sinistro e, apenas então, para aquele de provável ocorrência, segundo critérios objetivos, constituir reservas, que, em linguagem contábil, são chamadas provisões, uma vez que são de possível ocorrência e, muitas vezes, de difícil mensuração.
Tanto a contabilidade pública quanto a contabilidade voltada a entidades privadas adotam as mesmas diretivas no sentido de que o registro das provisões voltadas a temas tributários seja feito somente na hipótese de a ser "mais provável do que não" que recursos econômicos tenham de ser despendidos para fazer frente à obrigação. No caso da União, deverão ser registrados passivos e provisões voltados, inclusive, a tributos sub judice ou indevidamente recolhidos pelos contribuintes, os quais podem ser objeto de disputa, aplicando-se assim o mesmo critério que o administrador privado pratica, nas hipóteses de risco provável, quando se exige o registro contábil e risco possível, situação em que o administrador deve divulgá-lo, para dar conhecimento aos interessados que pode haver um efeito negativo futuro, muito embora não seja, nesse momento, provável a sua ocorrência. Por fim, na hipótese de risco remoto, nada deve ser feito em termos de informação. Por fim, quando a perda já for certa, o administrador não mais deverá considera-la como uma provisão, mas sim como um "contas a pagar".
No Balanço Geral da União (BGU), são divulgados os riscos aos quais o erário se sujeita e são feitas as reservas para fazer frente a eventuais perdas. Essa informação também contempla riscos de natureza tributária, o qual a União entende que, provável ou possivelmente, tenha de pagar no futuro. Aqui vale lembrar que a afirmativa de que "a União terá de pagar", exige atenção e cautela, pois, de fato, são os contribuintes que aportarão os recursos para liquidar tais passivos, quando se confirmarem. Os recursos do poder público, em sua maior parte, advêm da arrecadação de tributos, embora haja, como já se comentou, recursos de outras origens. Nesse contexto, é importante que os contribuintes tenham ciência de algumas das informações que constam do BGU, e que são indicadores de uma atuação por parte do Fisco federal que pode não corresponder ao melhor interesse dos cofres nacionais, como adiante se explica. Assim, vale lembrar que todo e qualquer tributo federal que seja recolhido aos cofres públicos representa uma receita para a União. Por outro lado, uma contingência que seja tida como de perda possível, somente representa uma despesa da União quando for por ela entendido que tal perda se transformou em provável. Vale também destacar que qualquer tributo recolhido indevidamente aos cofres públicos, quando devolvido ao contribuinte, terá sido atualizado pelos juros Selic, logo, cada uma dessas contingências, sejam elas de possível ou provável ocorrência, resultam por engordar ao longo do tempo o valor final que onerará, em última análise, o universo dos contribuintes.
Assim, no BGU, há uma rubrica, dentre outras, designada por demandas judiciais classificadas como de perda provável (PGFN), em conformidade com a Portaria AGU nº 40/2015, bem como com as normas contábeis relativas a provisões e passivos contingentes que, em 2022– segundo trimestre, indicam, em suas Notas Explicativas, no que tange, por exemplo, ao "PIS/Cofins, base de cálculo, inclusão do ICMS", tema discutido no Judiciário e já com trânsito em julgado, que o valor de R$ 533 bilhões foi transferido para contas de passivo, do Ministério da Economia/Secretaria Especial de Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional.
Feitas tais considerações, chamamos a atenção para o fato de que no BGU relativo ao segundo trimestre de 2022 foi prestada a informação de que a União tinha contingências relativas a tributos da ordem de R$ 1,158 trilhão, sendo que desse total, R$ 1,005 refere-se apenas a litígios que envolvem as contribuições ao PIS e à Cofins, em temas que, por vezes, o Poder Judiciário, já havia se manifestado maciçamente em sentido contrário aos entendimentos do Fisco, como é o caso do creditamento de insumos, objeto de decisão pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp. 1.221.170. Nesse caso, decidiu o tribunal que o conceito de insumo deve ser aferido "à luz dos critérios da essencialidade ou relevância, vale dizer, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item — bem ou serviço — para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte". Na prática, os auditores fiscais, muitas vezes, autuam os contribuintes sem observar plenamente o decidido no STJ, gerando um contencioso caro e desnecessário, ainda que se possa dizer que temas dessa natureza merecem, e sempre, análise criteriosa por parte das autoridades.
Além disso, em relação a essas mesmas contribuições discute-se: PIS/Cofins das instituições financeiras, inclusão do PIS/Cofins nas suas próprias bases de cálculo, PIS/Cofins/base de cálculo e ISS, PIS e Cofins e incidência sobre as receitas decorrentes da locação de bens móveis, PIS/Cofins e exclusão da base de cálculo de créditos presumidos de ICMS. Ou seja, o balanço da União, devidamente analisado, evidencia que há algo de errado com essas contribuições ou com a forma pela qual são vistas pelas autoridades fiscais. Essas disputas somam mais de R$ 848 bilhões, qualificadas como de perda possível. Além disso, há contingências cuja perda é remota, as quais não são objeto de divulgação. Todos esses passivos foram reconhecidos de acordo com a Portaria AGU nº 40/15 e alterações, bem como Lei Complementar nº 101/01, Lei de Responsabilidade Fiscal e normas contábeis relativas a provisões e passivos contingentes.
Esses fatos evidenciam uma reiterada atitude do poder público de não refletir sobre as advertências da doutrina e dos estudiosos, reiterando na cobrança de tributos que não atendem os princípios constitucionais na sua cobrança. e que, futuramente, terão de ser devolvidos, acrescidos de juros. Tal atitude nos parece ter um efeito pouco prático de aumentar a receita corrente da União, no primeiro momento, todavia, onerando no futuro, pesadamente, o orçamento, inclusive agregando despesas de juros que não estavam previstas, além de custas processuais que oneram a parte perdedora, no caso o Fisco. Nesse sentido, nos parece que seria razoável que os posicionamentos técnicos da RFB fossem mais amplamente discutidos com a sociedade e ouvidos especialistas, a exemplo do que ocorre no exterior, assim evitando que os contribuintes brasileiros arquem com os custos, tanto do pessoal envolvido, quanto financeiros.
Além disso, tem sido uma prática recorrente, quando determinados temas tributários de grande relevância são pautados para julgamento pelos tribunais superiores, que a PGFN apresente dados sobre o impacto econômico para a União, caso ela tenha de devolver aos contribuintes o que lhes foi tomado à revelia da lei. Parece-nos extraordinário vincular a dificuldade na devolução do indébito a problemas orçamentários, quando o resultado dos balanços da União devem ser utilizados como instrumento de aperfeiçoamento dos orçamentos. Nesse caso pergunta-se, "porque é que esses valores foram cobrados, em primeiro lugar"? A resposta parece ser, justamente, essa visão ilusória por parte do Fisco Federal de que mais vale arrecadar e devolver do aplicar a Lei conforme pensada pelo legislador.
Portanto, é sumamente relevante que se oriente: (1) o cidadão no sentido de buscar informações nesses dois documentos, para que ele conheça o real alcance do encargo que lhe cabe em termos de orçamento e balanço públicos; (2) os representantes do povo, em todas as casas legislativas e nas funções executivas sobre o real alcance do balanço geral e do orçamento dos entes públicos, assim buscando-se observar as regras da Constituição na instituição de tributos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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Elidie Palma Bifano é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.
Rafael Palma Bifano é advogado em São Paulo, mestre em contabilidade e especialista em Direito Tributário pela PUC.
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