Por: Paulo Henrique Feijó*
Escrevo esse artigo em
complemento ao vídeo que fiz quando da publicação da Emenda Constitucional (EC)
109/2021 que alterou diversos artigos da Carta Magna Nacional, entre eles o
168, com a inserção de dois parágrafos que, em síntese, vedam a uma prática
orçamentariamente perversa, mas muito comum nos Poderes Legislativo, Judiciário,
Ministério Público, Defensorias e demais órgãos constitucionais autônomos
(incluídos os Tribunais de Contas) de se apropriar das sobras de recursos
recebidos a título de duodécimos, transferindo-os para os seus respectivos fundos
especiais[1].
Mas, o que são
“duodécimos”?
São repasses financeiros
periódicos transferidos pelo Poder Executivo aos demais Poderes e órgãos
citados, usualmente correspondentes às suas dotações orçamentárias anuais
divididas em 12 parcelas (não necessariamente em valores lineares).
Tais recursos financiam
as ações a cargo do órgão ou entidade recebedora, uma vez que estes apresentam,
frequentemente, orçamentos desbalanceados, com despesas superiores às receitas
próprias daquele Poder ou órgão (receitas estas restritas às hipóteses nas
quais existe fundo especial legalmente instituído). Assim, é natural que esses
Poderes não arrecadem o suficiente para pagar suas despesas e obviamente serão
financiados com recursos arrecadados de toda a sociedade.
De logo, vislumbra-se que
o objetivo dos duodécimos é custear as atividades dos órgãos e entidades
desprovidos de arrecadação própria, tendo por limite o seu próprio orçamento,
que deve ser elaborado de forma técnica, tomando por base as estimativas de
receitas do Ente levantadas pelo Executivo e colocadas à sua disposição com
antecedência mínima, nos termos do § 3º, art. 12 da Lei Complementar 101/00[2].
A vedação Constitucional
Como tratei no vídeo,
confesso que quase foi a alteração constitucional dos meus sonhos, pois veda
prática adotada por muitas Câmaras Municipais, Tribunais de Justiça, Tribunais
de Contas, entre outros, que produz cenários estarrecedores, principalmente sob
a ótica de priorização do gasto público em determinadas unidades da Federação.
Como primeiro exemplo, pode-se
citar o Estado do Rio de Janeiro, onde no auge da crise fiscal (que resultou em
decreto der estado de calamidade financeira), o Fundo Especial da Escola da
Magistratura do Tribunal de Justiça, possuía disponibilidades de R$ 49,4
milhões ao término de 2019[3], enquanto o Poder
Executivo Estadual enfrentava sérias dificuldades econômicas, culminando na
tentativa de ingresso no Regime de Recuperação Fiscal.
Mas isso era uma pequena
parcela do entesouramento que existia nos demais Poderes, onde a soma dos
recursos de todos os Fundos superava R$ 2,0 bilhões, isso mesmo, bilhões de
reais!! Enquanto essa montanha de recursos estava “parada” nos Poderes, sendo
mais da metade do Tribunal de Justiça (TJRJ), o Estado estava fechando
restaurantes populares que forneciam comida para a população mais carente. Se o
parlamento representa a sociedade, deveria saber que a prioridade era manter o
serviço dos restaurantes populares.
Ainda no Rio de Janeiro
podem-se citar inúmeros casos relacionados à Assembleia Legislativa do Estado
(Alerj), que sob o discurso político de que faz “economias” no seu orçamento,
destina parte das sobras financeiras para outros órgãos e entidades, as vezes
até municípios, com o único intuito de mostrar uma “eficiência” que, na prática,
não existe, pois normalmente o orçamento da Alerj é inflado e acima da
capacidade de gastar.
No caso mais recente, a Casa
Legislativa autorizou a destinação de R$ 30 milhões do seu fundo especial para
apoio às vítimas do temporal que acometeu o Município de Petrópolis[4]. O gesto, apesar de nobre,
demonstra claramente o desvirtuamento da lógica orçamentária, onde o Poder
Executivo Estadual é quem deveria realizar políticas públicas direcionadas à
população petropolitana. O que se viu, todavia, foi a destinação de excesso de
caixa da Casa de Leis Estadual sem utilização até o momento, para socorrer as
vítimas da inundação.
Há outros gestos “nobres”
da Alerj, mas que não condizem com boas práticas de alocação orçamentária, como
destinar parte das sobras para comprar combustível para as viaturas da polícia.
Ora, por que não faz um orçamento realista e de preferência austero? Assim, não
gera sobras e se pode fazer a alocação direta para políticas públicas prioritárias
por meio da aprovação ou alteração da lei orçamentária. Se serve de consolo
para a sociedade fluminense (mas para desespero dos demais cidadãos brasileiros),
isso ocorre também em outras Assembleias.
Para não dizer que há
implicância com o Rio de Janeiro, vamos para o Município de São Paulo, o maior
do Brasil em pujança econômica, onde a Câmara de Vereadores possuía em seu
fundo especial R$ 38,0 milhões ao final de 2019[5]. De forma análoga à Alerj,
destinou a quase totalidade desses recursos ao Poder Executivo em 2020, para
auxiliar as ações de combate à pandemia[6].
É com o objetivo de se
evitar essa apropriação inadequada dos recursos públicos por parte dos Poderes,
que o legislador federal alterou o artigo 168 da Constituição Federal, o qual
passou a vigorar nos seguintes termos:
Art.
168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os
créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública,
ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei
complementar a que se refere o art. 165, § 9º.
§ 1º É vedada a transferência a fundos de recursos
financeiros oriundos de repasses duodecimais.
§ 2º O saldo financeiro decorrente dos recursos
entregues na forma do caput deste artigo deve ser restituído ao caixa único do
Tesouro do ente federativo, ou terá seu valor deduzido das primeiras parcelas
duodecimais do exercício seguinte. (grifos nossos)
Da leitura dos parágrafos
que foram inseridos, depreende-se que a EC 109/2021 buscou extirpar uma prática
arraigada em todo o território nacional: o represamento de saldos não
comprometidos de duodécimos (valores recebidos, mas não integralmente
utilizados para pagamento de despesas ou cobertura de restos a pagar), por meio
da sua reversão a fundos especiais constituídos por leis locais.
Apenas a título
exemplificativo, citam-se as leis aprovadas nos municípios de Curitiba e do
Recife, nesse sentido:
Lei
Municipal 13.087/2009 – Institui o Fundo Especial da Câmara Municipal de
Curitiba
Art.
3º. Constituem receitas do Fundo os recursos provenientes de economia de
recursos recebidos para o custeio das despesas do exercício, nos termos do
contido no art. 29-A, da Constituição Federal.
§ 1º
As receitas do Fundo Especial da Câmara Municipal de Curitiba - FEC, derivada
do valor da economia de recursos utilizado na constituição do fundo especial
será considerado para efeito da verificação do limite de gastos estabelecidos
para o Poder Legislativo no art. 29-A da Constituição Federal, apenas no
exercício do repasse da interferência financeira.
§ 2º
Os recursos do Fundo Especial da Câmara Municipal de Curitiba - FEC, serão
recolhidos em conta específica, junto à instituição financeira oficial definida
pela Comissão Gestora.
Lei
Municipal 17.853/12 - Cria no âmbito do Poder Legislativo Municipal o Fundo
Especial da Câmara Municipal do Recife com o objetivo específico de construção
e aquisição do mobiliário necessário ao funcionamento da sede própria
Art.
2º. São receitas do Fundo Especial:
I -
Recursos provenientes das economias resultantes dos repasses constitucionais do
exercício corrente e de outros devidos à Câmara.
Logo, não há dúvidas
sobre o intento do legislador no caso concreto: superavits de duodécimos não
utilizados pelos Poderes e órgãos beneficiários com tais repasses devem ser
restituídos (ou futuramente compensados, com a dedução de valores de período
subsequente) ao Poder Executivo, que é o responsável pela prestação da maioria
absoluta das políticas públicas, as quais, inclusive, constam dos orçamentos
aprovados pelos representantes do povo.
Em outras palavras, o
caixa deve ser gerido e utilizado para o alcance das diretrizes fixadas segundo
o orçamento aprovado, em especial nas dotações do Executivo por ser este o
responsável pela oferta substancial de bens e serviços, não sendo desejável
(mais do que isso, sendo inconstitucional, a partir da vigência da EC 109/2021)
o acúmulo de recursos originários de duodécimos em fundos de outros Poderes e
órgãos.
Vale ressaltar que, na
essência, a alteração constitucional garante a observância das funções clássicas
do orçamento, quais sejam: alocativa, distributiva e estabilizadora. Nesse
caso, primordialmente a alocativa, pois obriga que os recursos antes
entesourados sejam alocados, pelo menos em tese, no que mais importa e
interessa para a sociedade.
Contudo, há preocupações
no sentido de que, sem o incentivo para destinar aos seus fundos, os Poderes passariam
a “torrar” todos os recursos recebidos, quando antes tinham incentivos para “economizar”.
Caso isso aconteça, e é possível, mostrará o quão perdulários os gestores destes
poderes e órgãos são com os recursos públicos. Nesse caso a transparência e o
controle social poderão contribuir para mitigar esse risco.
A Resistência à Mudança,
a Interpretação Criativa e os Rendimentos de Aplicação
No Brasil, o que não
faltam são exemplos de interpretações criativas de legislação, gerando a
cultura da lei que “pega” e da que “não pega”. Este é o momento que se vive em
relação a essa importante mudança na gestão dos recursos públicos, já que alguns
Poderes e órgãos têm insistido em reverter valores diretamente atrelados aos
duodécimos recebidos aos seus fundos especiais, sob a justificativa de não
haver expressa vedação no texto constitucional inserido pela nova Emenda: trata-se
dos rendimentos de aplicação financeira das referidas disponibilidades.
Para que todos entendem o
que está acontecendo, está circulando uma tese de que a sobra do duodécimo deve
ser devolvida, mas os rendimentos da aplicação financeira desses recursos podem
ser destinados aos fundos especiais dos Poderes.
Esta é uma questão que
abordei quando gravei o vídeo que trata da questão da extinção dos fundos dos
Poderes. Àquela altura, levantei essa hipótese como algo que estaria num limbo,
mas, decorrido um certo tempo e analisando as normas de direito financeiro e
decisões de órgãos de controle, defendo que, nem que seja por coerência,
somente existe uma saída quando o assunto é o rendimento das aplicações
financeiras dos saldos da conta dos duodécimos: seguir o mesmo caminho do
principal.
Nesse particular, vislumbra-se
como indispensável abordar os seguintes argumentos que mitigam a possibilidade
de interpretação alargada dos novos parágrafos do art. 168 da CF, no sentido de
permissividade de eventual destinação diversa dos rendimentos de duodécimos em
relação ao principal:
· - os rendimentos só existem em virtude da
não utilização temporária dos duodécimos, com a aplicação dos valores em investimentos
que remuneram a entidade normalmente pela sistemática pro rata temporis;
- como regra geral, as receitas com rendimentos de aplicação financeira devem ser classificadas na mesma fonte do recurso aplicado, portanto, sujeitos às mesmas regras de vinculação e eventuais vedações do recurso original, sendo essa uma regra consagrada pelos órgãos de controle quando se trata de outros recursos, tais como receitas de Convênios e Fundeb.
O primeiro argumento
possui natureza iminentemente lógica: se existe rendimento de aplicação
financeira resultante de investimento de recursos oriundos de repasses
duodecimais, é porque estes não foram utilizados em um certo lapso temporal. O
rendimento é produto do não emprego da disponibilidade do duodécimo e está
diretamente a ele atrelado. Um não existiria sem o outro.
Sobre isso, vale
ressaltar que não se está, de qualquer forma, a sugerir que os recursos de
duodécimos momentaneamente não utilizados permaneçam em conta corrente bancária
sem a aplicação em algum tipo de investimento. Pelo contrário, a remuneração
das disponibilidades é boa prática de gestão financeira, mas, nos termos da
Emenda, os rendimentos que porventura não sejam utilizados para custear as
despesas do Poder ou órgão, devem ser ressarcidos ao Executivo em determinado
período do exercício financeiro[7].
O segundo ponto, diz
respeito ao mecanismo de fonte/destinação de recursos, entendido como o agrupamento
de receitas[8]
que possui as mesmas normas de aplicação. De acordo com o MCASP 9ª ed., a fonte
é um instrumento de gestão da receita e da despesa ao mesmo tempo, pois tem
como objetivo assegurar que determinadas receitas sejam direcionadas para
financiar atividades (despesas) governamentais em conformidade com as leis que
regem o tema.
Em se tratando dos
aspectos contábeis e orçamentários, é pacífico que os rendimentos de aplicações
financeiras classificados em fontes de recursos específicas devem obedecer a
mesma fonte do principal e, portanto, seguir as mesmas regras a ele aplicáveis.
Nesse caso, eventuais sobras, seja de origem dos rendimentos ou do principal,
ao comporem a mesma fonte, são sobras de duodécimos, não sendo possível, pela
codificação da fonte identificar, nas disponibilidades se elas decorrem do
principal ou do rendimento.
A Secretaria do Tesouro
Nacional (STN) editou a Nota Técnica SEI 34.054/2021/ME[9], buscando orientar os
entes federados a como proceder quanto à contabilização deste e de outros
aspectos também integrantes da alteração constitucional. No tocante aos rendimentos
de aplicação financeira, assim dispôs o Tesouro:
25.
O repasse de duodécimos deve ocorrer por transferência financeira e, portanto,
a classificação da fonte de recursos dos valores repassados deve ser mantida
pelos órgãos que recebem duodécimos. Dessa forma, será possível apurar o
superávit por meio da fonte de recursos, conjugando-se com os registros em
contas de natureza de controle, DDR – Disponibilidade por Destinação de
Recursos. No que diz respeito aos rendimentos de aplicação financeira desses
recursos, estes permanecem com a mesma vinculação de recursos do duodécimo.
(grifo nosso)
No arcabouço legislativo
nacional, são vários os exemplos que remetem à necessidade de observância da
aplicação de recursos de rendimentos de aplicação financeira às mesmas regras
imputadas ao principal que o originou. Um dos mais conhecidos diz respeito ao
Fundeb (Lei Federal 14.113/20):
Art.
24. Os eventuais saldos de recursos financeiros disponíveis nas contas específicas
dos Fundos cuja perspectiva de utilização seja superior a 15 (quinze) dias
deverão ser aplicados em operações financeiras de curto prazo ou de mercado
aberto, lastreadas em títulos da dívida pública, na instituição financeira
responsável pela movimentação dos recursos, de modo a preservar seu poder de
compra.
Parágrafo
único. Os ganhos financeiros auferidos em decorrência das aplicações previstas
no caput deste artigo deverão ser utilizados na mesma finalidade e de acordo
com os mesmos critérios e condições estabelecidos para utilização do valor
principal do Fundo. (grifo
nosso)
Logo, as mesmas restrições impostas pela EC 109/2021, no contexto do principal do duodécimo transferido e não utilizado pelos Poderes e órgãos beneficiários, devem vigorar no tocante a eventuais rendimentos de aplicação financeira das disponibilidades momentaneamente não utilizadas. Qualquer tentativa dos Poderes de se apropriarem de eventuais saldos dos recursos de rendimentos de aplicação financeira para seus fundos é interpretação criativa que visa burlar a essência da alteração promovida na Constituição Federal.
[1] Lei Federal
4.320/64, art. 71. Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas
que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços,
facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.
[2] Lei Complementar
101/00, art. 12. As
previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os
efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do
crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas
de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os
dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e
premissas utilizadas.
[...]
§ 3o O
Poder Executivo de cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e do
Ministério Público, no mínimo trinta dias antes do prazo final para
encaminhamento de suas propostas orçamentárias, os estudos e as estimativas das
receitas para o exercício subsequente, inclusive da corrente líquida, e as
respectivas memórias de cálculo.
[3] Fonte: http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/7595253/balanco-patrimonial-do-fundo-especial-da-emerj-ug-036200-feemerj.pdf/c744d2d0-c140-0057-8ce3-5d0f875458b4?version=1.0.
Acesso em 24.03.2022.
[4] Fonte:
https://diariodorio.com/estado-aprova-doacao-de-r-30-milhoes-do-fundo-especial-da-alerj/.
Acesso em 24.03.2022.
[5] Fonte:
https://www.saopaulo.sp.leg.br/wp-content/uploads/2020/07/2019-anual-Bal-e-Rel-FECAM.pdf.
Acesso em 24.03.2022.
[6] Fonte: https://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/camara-de-sp-aprova-destinacao-de-r-38-mi-para-saude-e-assistencia-social/?msclkid=67ee18f3aba911ec9b9d7aed7cd9b1db
. Acesso em 24.03.2022.
[7] Nesse texto não
serão debatidos aspectos da contabilização, que poderão ensejar ajustes nos
roteiros contábeis das unidades envolvidas, mas que são plenamente possíveis,
sobretudo com o uso do mesmo Siafic consoante comando da Lei de
Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00, art. 48, § 6º).
[8] Frisa-se que os
recursos de duodécimos recebidos não devem ser contabilizados como receita
orçamentária pelo beneficiário, mas as transferências financeiras recebidas
devem ter o indispensável registro da fonte de recurso.
[9] Fonte: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:13849. Acesso em 24.03.2022.
Obrigado por compartilha esse texto, Prof. Jorge.
ResponderExcluirBrilhante análise
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